Michel Temer não escreve sentado o que fala em pé

(*) Ucho Haddad

Cobrar coerência dos políticos brasileiros é tarefa hercúlea, talvez seja missão impossível. Submetendo a consciência à oscilação dos próprios interesses, a classe política não se preocupa com o que diz, muito menos com o que pensa. Desde que o poder e os respectivos privilégios sejam mantidos. Às favas o povo, que serve apenas em tempo de eleições.

Enfrentando uma grave e crescente crise política, Michel Temer já incorporou ao bestiário oficial o dito popular “faça o que digo, não faça o que faço”. Esse provérbio há muito corre o planeta em todas as direções, mas parece ter sido feito sob medida para o momento vivido pelo presidente da República.

Senhor de discurso escorregadio, Temer usa a gramática castiça, com direito a mesóclises e outros penduricalhos do idioma verde-louro, para desviar a atenção da opinião pública. O idioma bem falado faz bem aos ouvidos, depois de tantos assassinatos da língua cometidos por Lula e os muitos “milhão” em propina pagos pela dupla sertaneja Wesley e Joesley. Só mesmo quem conhece a peçonha da fala de Michel Temer é capaz de perceber o que há nas entrelinhas do seu palavrório rocambolesco.

O presidente vem tentando “vender” aos brasileiros a ideia de que não é mais do mesmo. Por maior que seja o esforço, seu poder de convencimento é pífio. Chego a pensar que a última conversa fiada que Temer emplacou foi quando conquistou o coração da bela Marcela.

Michel é a continuidade daquilo que o Brasil não mais suporta, a política dos velhacos. Dando sequência à cantilena mitômana da antecessora, o presidente acusa aqueles que o acusam, alega inocência sem ser inocente, exala uma probidade que inexiste. Ou seja, Temer é mais do mesmo, talvez um pouco piorado, pois chega a ser pernóstico em suas esfarrapadas desculpas.

Ciente de que o cerco está a se fechar no seu entorno, Michel resolveu fazer uma repentina mudança ministerial que em poucas horas virou lambança. Despejou Osmar Serraglio do Ministério da Justiça, sem avisá-lo, colocando no cargo um amigo longevo, Torquato Jardim, que acredita serem suficientes a cara de poucos amigos e o discurso mirabolante para reforçar a defesa do enrolado presidente.

Ao novo ministro da Justiça não cabe defender o presidente da República, mas, sim, os interesses da nação naquilo que compete à pasta. Mesmo assim, desde que sentou-se na cadeira de titular da Justiça, Torquato Jardim tem se dedicado a defender o patrão.

A investida é tão desesperada e estapafúrdia, que Torquato ousou afirmar que é preciso conhecer a “cultura parlamentar” de Michel Temer para compreender o encontro com Joesley Batista. Tal afirmação é o típico tiro de sal que sai pela culatra. Quem conhece a cultura do Parlamento brasileiro já sabe os motivos que levaram Temer a receber o dono do JBS nos porões do Palácio do Jaburu. Foi exatamente por causa da cultura parlamentar bandoleira que Temer solicitou a manutenção da mesada paga a Eduardo Cunha, em troca de silêncio obsequioso. Em outras palavras, Torquato Jardim tenta aparecer em cena como o gênio salvador da pátria, mas já deu mostras de que não entende do riscado.

Voltando à incoerência da classe política dessa barafunda chamada Brasil… Em 13 de fevereiro de 2017, Michel Temer, tentando minimizar o estrago da segunda “lista de Janot”, disse que ministros seriam afastados provisoriamente caso virassem alvo de inquéritos.

“Se houver denúncia, o que significa um conjunto de provas que eventualmente possam conduzir ao seu acolhimento, o ministro que estiver denunciado na Lava Jato será afastado provisoriamente. Depois, se acolhida a denúncia, e aí sim, o ministro se transformar em réu da Lava Jato, o afastamento é definitivo”, disse Michel Temer, com sua conhecida pompa e circunstância.

E Temer foi além em seu prólogo rebuscado e moralista… “Faço essa declaração para dizer que o governo não quer e não vai blindar ninguém. Apenas não pode aceitar que a simples menção inauguradora de um inquérito, para depois inaugurar uma denúncia, para depois inaugurar um processo, já seja de igual motivo a incriminá-lo em definitivo e em consequência afastar o eventual ministro”, declarou o presidente.

Michel Temer usa a seu favor todas as teorias populares, já que o tempo urge e a derrocada está ao pé da rampa do Palácio do Planalto. E a teoria da vez é a do “um peso e duas medidas”. Não estranhe, pois a teoria dos dois pesos e duas medidas teve de ser adaptada à triste realidade da Botocúndia.

Em todos os dicionários da língua portuguesa, do mais mambembe ao mais espetacular, “ninguém” significa nenhuma pessoa. Pois bem, se “o governo não quer e não vai blindar ninguém”, não há razão para Temer blindar a si mesmo. O presidente da República é alvo de inquérito por corrupção, obstrução à Justiça e organização criminosa, mas quer permanecer no cargo à base de enfadonhos rapapés jurídicos e espúrias manobras políticas. Caso seu discurso de fevereiro passado fosse verdadeiro, a opção seria o autoafastamento temporário.

Esse cenário de contradições inegáveis mostra que Michel Temer não honra as próprias palavras, algo tão raro no meio político quanto a quase extinta coerência. Aliás, pensando bem, já que recorri a tantos ditos populares neste artigo, não erro ao afirmar que Temer “não escreve sentado o que fala em pé”.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor e poeta.

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