Cracolândia: tráfico de ideologia, uso político do caos e servilismo da imprensa

(*) Ucho Haddad

O Brasil vive uma crise política grave e sem precedentes, mas todos os atos e fatos do cotidiano nacional passam obrigatoriamente pelas eleições de 2018, como se o País fosse uma versão moderna e tropical do País de Alice. Para piorar o que já é péssimo, a imprensa consegue agir como proxeneta da informação.

Há uma semana, mais precisamente no dia 21 de junho de 2017, estive na Cracolândia que funcionava na Praça Princesa Isabel, no bairro da Luz, região central da capital paulista. A noite avançava na companhia do frio quando o chamado “fluxo” (movimento de dependentes químicos) decidiu mudar de endereço. Uma legião de usuários de crack saiu pelas ruas arrastando seus pertences pelo chão, imagem que remeteu de chofre aos refugiados que tentam escapar de guerras, miséria e perseguições.

Autoridades presentes ao local não souberam explicar o que havia levado os dependentes a migrarem para a Cracolândia original, ao que disse ter sido uma ordem do tráfico de drogas o motivo da “procissão” (movimento migratório de dependentes). Uma questão lógica, pois um usuário de crack é desprovido da capacidade de volição – ato de escolher ou decidir. Afinal, são resíduos humanos que como satélites desgovernados viajam na órbita do tráfico de drogas.

Naquele dia completava um mês da primeira ação contra os traficantes promovida pelo prefeito João Doria em conjunto com o governo de São Paulo. Não demorou muito para surgirem declarações estapafúrdias na imprensa. A primeira delas, talvez a mais absurda, partiu de um desses muitos “politicamente corretos” que sobram Brasil afora. Disse o especialista (sic) que a questão da Cracolândia passa pelos direitos humanos e que a prefeitura paulistana estava a tratar o assunto como pauta política.

Confesso ter aversão a esses entendidos de plantão, pois é sabido que não apenas sobrevivem da perpetuação do caos, mas trabalham disfarçadamente para o retorno de grupelhos esquerdistas ao poder. O que parece devaneio de minha parte é a mais pura tradução da verdade.

Uma solução para a Cracolândia, mesmo que parcial, alavancaria a pré-candidatura de João Doria à Presidência da República no próximo ano. Em outras palavras, o eventual sucesso da ação da prefeitura de São Paulo na Cracolândia não interessa ao governador Geraldo Alckmin, que também mira o Palácio do Planalto, nem à esquerda festiva, que ainda não conseguiu se livrar da ressaca provocada pela débâcle política. Destarte, quando um político torna=-se uma ameaça eleitoral, golpes sujos e rasteiros são a receita primeira.

Sobre as besteiras vociferadas pelos especialistas que despencaram na imprensa verde-loura, a Cracolândia não é uma questão de direitos humanos, mas, sim, uma questão humanitária. No momento em que um ser humano ingressa na perigosa seara da cropofagia (prática de comer fezes), não há como tratar do problema de outra maneira. Por mais horripilante que seja, alguns dependentes químicos chegaram ao cúmulo de comer as próprias fezes. E quando isso acontece, o problema é humanitário, não de direitos humanos, como sugerem alguns esquerdopatas que se submetem a ordens canhestras.

Supondo que a questão fosse um caso de direitos humanos, o tráfico de ideologia que ocorre na Cracolândia, com base na tragédia humana, é crime hediondo. Apostar na degradação do próximo para reforçar uma plataforma política ultrapassa com folga as fronteiras do aceitável. E como tal essa atitude deve ser condenada com todas as ferramentas e forças.

O problema da Cracolândia vai muito além do que pode ser visto a olhos nus, o que é muito assustador. É preciso conhecer os subterrâneos da política para compreender o que se passa no entorno desse cenário em que impera a desumanidade. Enquanto o prefeito da maior cidade brasileira busca uma solução para os milhares que foram abduzidos pelo crack, alguns alarifes profissionais trabalham nos bastidores para inviabilizar o sucesso da operação, pois em jogo está a permanência no poder oficial e no poder paralelo. Isso porque, mesmo que absurdo pareça, algumas autoridades estão ligadas direta ou indiretamente aos criminosos que controlam o comércio de drogas na região. Em suma, há dinheiro sujo e interesses escusos nesse palco criminoso.

Causa espécie o fato de a imprensa fomentar a discussão irresponsável e oportunista sobre a Cracolândia, induzindo a opinião pública a erro. É preciso esclarecer a população sobre tudo o que de fato ocorre nesse gueto marginal da sociedade, uma vez que o crime organizado vinha ditando as regras com a aquiescência do Estado. Resumindo, as autoridades e a sociedade fingiam que a Cracolândia era uma obra de ficção, enquanto os traficantes faturavam aos bolhões à sombra de vidas devoradas pelo vício.

Nesse quadro de caos continuado sempre sobram oportunistas, prontos para faturar com a desgraça alheia. Os ideólogos de aluguel se arreganham diante de um microfone para afirmar que a ação da prefeitura paulistana não passa de faxina social. Quanta imbecilidade enxertada em tão pouca gente! Outros mais desavisados, que sem cerimônia agem como papagaios de pirata, repetem o mantra ignaro de que a ação na Cracolândia tem por objetivo contemplar a especulação imobiliária. Mais um absurdo no país da piada pronta.

Contudo, é inaceitável que a imprensa faça o jogo sujo de alguns e condene gratuita e irresponsavelmente aquilo que está no caminho certo. Solucionar os problemas existentes na Cracolândia – são inúmeros – não é algo tão rápido e simples quanto acionar o interruptor da luz da sala. Exige foco, perseverança, paciência e compromisso.

Porém, ao que parece, a Cracolândia não é mais um problema. Afinal, a grande imprensa deixou de noticiar as mazelas do local, como vinha fazendo diariamente, dando espaço a “paraquedistas” que na melhor das hipóteses conseguiram prestar um desserviço à cidadania. Esse arrefecimento midiático tem uma explicação econômica – talvez o termo adequado seja explicação financeira. Campanhas publicitárias sobre as ações na Cracolândia começaram a ser veiculadas na imprensa, como forma de mostrar o cidadão sobre o que está sendo feito em prol dos dependentes e contra os traficantes. A mazela continua, mas a imprensa resolveu silenciar.

De tal modo, entre o tilintar do vil metal e a aludida defesa dos direitos humanos, a primeira opção é a melhor, pelo menos para os veículos de comunicação. Disse certa feita François de La Rochefoucauld: “A hipocrisia é uma homenagem do vício à virtude”. Aproveitando que a pauta é vício, quando o assunto é hipocrisia os políticos espertalhões e os jornalistas aéticos são professores da matéria.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta e fotógrafo por devoção.

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