A face lenhosa do juiz Marcelo Bretas e o elevado espírito público do baiano Adolpho Schindler Netto

(*) Ucho Haddad

Diz a lenda que na Roma Antiga prevalecia o dito que à mulher de Júlio César cabia o dever não apenas de ser honesta, mas de parecer como tal. Pompeia Sula, segunda esposa do imperador romano, teve sua idoneidade colocada à prova por ocasião da festa “Boa Deusa” (Bona Dea, em latim), orgia báquica reservada às mulheres de então.

Jovem, rico e ousado, Publius Clodius era apaixonado por Pompeia e não resistiu aos encantos da mulher do imperador. Disfarçado de tocadora de lira, Publius entrou na tal festa com o objetivo de aproximar-se da bela e igualmente jovem Pompeia Sula. Contudo, Aurélia, mãe de Julio César, descobriu o truque e impediu que Publius alcançasse seus objetivos.

Horas depois do episódio, a notícia se espalhou entre os romanos e Júlio César divorciou-se de Pompeia. Apesar do imbróglio, César não foi contra Publius Clodius, que chamado a depor como testemunha, em tribunal, afirmou nada ter ou saber contra o imperador.

Foi então que os senadores, tomados pela informação reveladora, questionaram: “Por que se divorciou da sua mulher?”. A resposta do imperador ganhou fama e desde então percorre o planeta: “A mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita”. Tal frase originou o dito que segue: “À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta”.

Pois bem, cá não estou para discutir a honradez de Pompeia Sula, mas para analisar fatos que ocorrem no cotidiano da política nacional sem que os brasileiros reajam dessa ou daquela forma. Juiz federal no Rio de Janeiro e tido como o Sérgio Moro das paragens fluminenses, Marcelo Bretas passou a ser idolatrado pela opinião pública apenas porque mandou para a prisão o ex-governador Sérgio Cabral Filho e alguns dos seus sequazes.

Bretas estava a viver no Olimpo da opinião pública verde-loura, até o momento em que veio à tona a informação de que recebe “auxílio-moradia”. É importante frisar que Marcelo Bretas reside em imóvel próprio, no Rio de Janeiro, o que de chofre não justifica o pagamento do benefício.

O caso torna-se ainda mais complexo porque a mulher de Bretas, a também juíza Simone Diniz Bretas, reside no mesmo imóvel e recebe benefício idêntico. Em suma, o casal Bretas embolsa dois benefícios, custeados pelo suado dinheiro do trabalhador, sob a alegação de que tem direito ao auxílio-moradia. Uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proíbe o pagamento do benefício a casais de magistrados que morem sob o mesmo teto.

Em dada rede social, Bretas apelou à ironia e afirmou que tem o “estranho” hábito de recorrer à Justiça para cobrar seus direitos. “Talvez devesse ficar chorando num canto, ou pegar escondido ou à força. Mas, como tenho medo de merecer algum castigo, peço na Justiça o meu direito”, escreveu o magistrado fluminense.

Em discussão não está a legalidade do benefício, previsto na Lei Orgânica da Magistratura, mas na moralidade e na justeza do mesmo. No momento em que o País começa a dar os primeiros passos para sair da mais grave crise econômica de sua história, esse tipo de benefício é uma afronta à sociedade.

Certa feita, John Fitzgerald Kennedy disse: “Não pergunte o que seu país pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país”. Não estou a colocar em xeque o caráter e a moral de Marcelo Bretas, mas a turbulência institucional que chacoalha o Brasil exige, cada vez mais, que o exemplo venha de cima, jamais na mão inversa. Infelizmente, aqueles que gravitam na órbita do Estado não abrem mão de sugar o máximo possível.

Marcelo Bretas, assim como outros juízes e procuradores da Operação Lava-Jato, não deve ser endeusado por conta das próprias decisões judiciais, pois essa foi a profissão que ele escolheu e por isso é regiamente remunerado, com direito a benefício que, no meu entendimento, fere o princípio da moralidade, mesmo que previsto em lei.

Esperar que os servidores do Estado passem a adotar, da noite para o dia, postura coerente e patriótica, eivada pela lisura, é querer demais no paraíso do “jeitinho”. Porém, nem tudo está perdido, mesmo que alguns aleguem que uma andorinha não faz verão.

Insisto na tese de que o bom exemplo deve vir de cima. A vida profissional me concedeu o privilégio de conhecer aquele que costumo chamar de “um dos mais honestos servidores públicos” do País. O que não significa que outros não existam, pelo contrário, pois conheço mais alguns.

Baiano de Salvador, Adolpho Ribeiro Schindler Netto é o servidor público mais honesto que conheci. Tive a honra de ser vizinho de Adolpho no período em que morei em Brasília para cobrir o cotidiano da política nacional. A amizade surgiu em pouco tempo, mesmo cientes de que nossas crenças e ideologias flanavam, e ainda flanam, em céus distintos. Os respectivos destinos profissionais nos separaram, mas ficou o respeito mútuo e a admiração de parte a parte. O que para mim é uma inenarrável honra.

Naqueles anos em que estive na capital dos brasileiros, Adolpho Schindler estava chefe de gabinete do então ministro Gilberto Gil (Cultura), tão baiano quanto o amigo que fiz e de quem tenho excepcionais referências.

Em momento algum Adolpho Schindler valeu-se do cargo que ocupava – e não era pouca coisa – para auferir qualquer benefício ou vantagem. Em outras palavras, nunca soube que o amigo tenha dado a famosa “carteirada”. O posto de chefe de gabinete de um ministro de Estado contempla algumas benesses, mas Adolpho, com sua baianidade simplória e contagiante, exercia de forma cotidiana suas crenças e seu invejável bom senso.

Com direito a carro oficial com motorista, para ir e vir para todo canto e a qualquer hora, Adolpho Schindler simplesmente dispensou a mordomia. Disse-me certa feita ser um contrassenso usar o carro oficial se o flat em que residíamos oferecia gratuitamente aos hóspedes um serviço de van. E diariamente Adolpho ia ao Ministério da Cultura – e voltava – a bordo da van que percorria os dois braços da Esplanada dos Ministérios e alguns locais próximos.

Nem por isso Schindler Netto se apequenou como chefe de gabinete, pelo contrário, pois tinha (e tem) responsabilidade com a coisa pública, algo com que toda autoridade deveria se preocupar. De igual modo, o soteropolitano Adolpho não deixou de ser a pessoa extraordinária que é. Mostrou silenciosamente àqueles com quem convivia na capital federal que no Brasil é preciso fazer a diferença. E a diferença se ergue a partir de pequenas atitudes. Mesmo assim, jamais pensou em gazetear suas atitudes emolduradas pela correição.

Mas o caso da van não foi a única atitude coerente e proba de Adolpho Schindler, como chefe de gabinete de Gil, que tomei conhecimento. Sempre que podia, Adolpho ia a Salvador nos finais de semana, mas jamais criou algum evento oficial de “encomenda” na capital baiana para ter a passagem aérea custeada pelo erário. E poderia fazê-lo com tranquilidade e sem despertar desconfianças, pois a Bahia é a terra natal do então ministro. Confidenciou-me certa vez que não havendo eventos oficiais do ministério ou assuntos a serem resolvidos em Salvador, pagava a passagem do próprio bolso. Quando a conta bancária estava ao rés do chão, ficava em Brasília.

Não costumo “rasgar seda” para quem quer que seja, mas não penso duas vezes antes de reconhecer a grandeza do caráter de outrem. Adolpho Schindler Netto fez o que todo servidor público deveria fazer. Mas infelizmente isso não é regra, mas exceção.

Considerando que “em terra de cego quem tem um olho é rei”, Adolpho é o imperador quando o assunto é ética pública. Ele tinha direito a certos benefícios, mas se preocupou com o que poderia fazer em favor do Estado, como preconizou Kennedy.

Por outro lado, o juiz Marcelo Bretas, cujo caráter não está em questionamento, mostrou ser míope em termos de cidadania e abusou da face lenhosa ao afirmar que recorreu à Justiça para garantir seus direitos.

Torço para que Bretas tenha a mesma sorte que tive: conhecer o exemplar Adolpho Schindler Netto, que hoje esbanja coerência na terra dos orixás. Um agarrou-se ao auxílio-moradia, outro optou pela van. A esperança é a última que morre.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta e fotógrafo por devoção.

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