(*) Cristovam Buarque
Ao longo de 350 anos, a escravidão foi legal no Brasil Colônia e no Brasil Império. Tornando a escravidão ilegal, a Lei Áurea teria desfeito o pacto político que mantinha o Brasil como único país imperial na América Latina e como o último a manter a legalidade do sistema escravocrata. Ainda que não houvesse correlação entre a abolição e a queda do império, o fato é que a República mantém até hoje privilégios legais, embora imorais, defendidos pelos que os recebem, tanto quanto os escravocratas defendiam seus direitos à posse dos escravos. O foro privilegiado para milhares de detentores de mandatos eletivos é um exemplo dessas legalidades indecentes, resquícios da sociedade imperial e escravocrata.
Todos os servidores que recebem auxílio-moradia estão corretos individualmente em dizer que recebem um benefício legal. Não é roubo, não é propina, mas, ao ser legal, o benefício fica ainda mais imoral, porque mostra uma República que legaliza privilégios. Nas últimas semanas, temos visto a argumentação de respeitados juízes defendendo privilégios sob o argumento de que é legal, sem considerar que são incompatíveis com a decência republicana. O juiz Moro, maior símbolo da luta recente pela moralidade na política, usa o argumento de que isso é para compensar a falta de reajuste salarial nos últimos dois anos. Não só se beneficia como utiliza a terminologia de auxílio-moradia para driblar e burlar a lei que define os salários. Um argumento indecente para justificar o privilégio que o trabalhador comum não recebe.
Da mesma forma, diversos servidores ultrapassam o teto salarial do serviço público, definido pela Constituição Federal, com a mudança terminológica que o teto é para o salário, não para os múltiplos agregados que se somam para formar a remuneração. É a legalização da indecência a que a República se acostumou, tanto quanto o império.
O mais escandaloso desses truques que burlam a moral é que se apresentam como uma indecência legal. Se esse argumento prevalecer, os juízes aposentados deveriam ter direito a auxílio-moradia. Inclusive um juiz preso em sua casa própria, mas com direito ao auxílio-moradia para compensar a perda salarial, devido à inflação. Se os demais trabalhadores não têm esse direito, não há justificativa moral para juízes e procuradores também terem, assim como os parlamentares que fazem as leis e são campeões de privilégios legais, porém indecentes.
Nada justifica o parlamentar definir seu próprio salário 35 vezes maior que o salário mínimo recebido por seus eleitores, e ainda forçar o eleitor a pagar o aluguel da sua casa e também da casa do senador ou do deputado sob a forma de auxílio-moradia. Com o salário que recebe, não há razão para juiz ou parlamentar não pagar o aluguel de sua casa.
Privilégios legais, mas indecentes como esses de parlamentares e juízes, estão corroendo a Democracia e a República. Até o auxílio-moradia era legal, mesmo aos deputados federais e senadores que eram moradores em Brasília e representavam o Distrito Federal. Até hoje é permitido acumular salário de parlamentar com aposentadorias, mesmo indo além do teto constitucional. Felizmente, alguns se recusaram a receber essas ajudas por fugirem à regra. Pode ser legal a construção dos palácios onde funcionam os poderes Legislativo e Judiciário, mas é indecente construir essas obras faraônicas enquanto, ao lado deles, milhões de famílias não têm saneamento.
O senador Randolfe Rodrigues (REDE/AP) apresentou um projeto de lei acabando com o auxílio-moradia; o deputado Pedro Cunha Lima (PSDB/PB) apresentou outro acabando com os carros chapas-branca que assolam a República, nos três Poderes. Esses são os mais visíveis dos privilégios legais, mas não são os únicos. A sociedade brasileira se acostumou com o privilégio de que a educação dos filhos dos ricos deve ser melhor do que a educação dos filhos dos pobres, tomando isso como algo legal, sem perceber que, além de indecente, essa desigualdade é estúpida por impedir o desenvolvimento do potencial dos cérebros de milhões de brasileiros. Com isso, concentra a renda, impede o aumento da produtividade e da criatividade na economia, insufla violência e desagrega a sociedade, reproduzindo o maldito sistema de privilégios legais que povoam a sociedade brasileira.
(*) Cristovam Buarque é senador pelo PPS do Distrito Federal e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) – artigo publicado originalmente no Correio Braziliense.