Não acaba mais na quarta-feira

(*) Maria Lucia Victor Barbosa

O carnaval está se tornando cada vez mais longo. Começa muito antes do sábado e não acaba na Quarta de Cinzas. Às favas as tradições religiosas da Quaresma. Isso em um país que é tido como de maioria católica. Aliás, tradições, essas memórias do tempo, irão se esvaindo até se tornarem invisíveis para novas gerações.

Nas produções elaboradas e rutilantes das escolas de samba, tanto no Rio de Janeiro quanto em São Paulo, todo ano pobres se vingam transformando-se em reis e rainhas. Mulheres se despem para satisfação de nativos e estrangeiros. A proximidade, nos carros alegóricos, com personalidades populares leva ao nirvana misturado com samba.

Durante horas desfilam escolas competindo entre si para alcançar o primeiro lugar, porque viver é competir. Nas arquibancadas o público não sente sono, fome ou cansaço durante toda a noite até a manhã do dia seguinte. Algo inimaginável caso fosse obrigatório como trabalhar. Aí cansava demais porque ninguém é de ferro. Nos camarotes, ricos e famosos se entretêm comendo, bebendo, fofocando. O desfile é de menos porque sabem que aqueles reis e rainhas são de mentirinha.

Neste ano chamou atenção no sambódromo críticas políticas e sociais. A campeã Beija-Flor trouxe para a avenida encenações da violência e da corrupção. Esta era expressa pela ratazana simbolizando o petrolão do PT. Homens vestidos com ternos pretos e guardanapos nas cabeças representavam o ex-governador atualmente preso, Sérgio Cabral, e seu pessoal na famosa estada em Paris.

A Beija-Flor foi muito aplaudida pelo público que pagou caro para assistir aos desfiles. Apenas ficou esquecida a corrupção do presidente de honra da escola, o bicheiro Anísio Abrahão David, e o fato dos cariocas terem eleito Sérgio Cabral duas vezes, além do seu sucessor, Pezão. Sem falar que o PT era ou ainda é forte no Rio de Janeiro. Se Lula se safar no Supremo, certamente muitos cariocas votarão nele novamente.

A vice-campeã, Paraíso do Tuiuti, mostrou ser uma escola caprichosamente aparelhada pelo PT e seus agregados, como o PSOL. Agradou as arquibancadas com críticas ao presidente Temer vestido de vampiro, carteiras de trabalho estragadas pela reforma trabalhista e os “manifestoches”, vestidos com camisas verde-amarelas e manipulados pela Fiesp, símbolo do capitalismo.

Paradoxalmente, “manifestoches” foram os milhões de brasileiros que bateram panela e, espontaneamente, foram às ruas em todo país para pedir a saída de Dilma Rousseff, de Lula e do PT. Os carnavalescos da Tuiuti não apresentaram os chamados “pães com mortadela”, que recebem um lanche e alguns trocados para irem em ônibus fretados pela CUT às manifestações de interesse do PT, sem saberem aonde e porquê vão.

Nenhuma escola mostrou o Tríplex, o Sítio de Atibaia e outras maracutaias de Lula, ficando assim um misto de incoerência e cinismo da parte dos carnavalescos. No fundo foi a revolta, não política, mas da falta de verba pública, apesar de que não devem ter faltado verbas de variadas fontes.

Quanto ao carnaval de rua, que se expressa através dos blocos, levou milhões para a folia. São Paulo deixou de ser o “túmulo do samba” e fervilhou de gente que pulou freneticamente sem parar por dias seguidos, braços para o ar numa espécie de transe coletivo. Tanto lá quanto no Rio, sobrou um rastro de imundície e fedor de urina, qual souvenir de nossa marca cultural.

Observando bem, o aumento dos blocos indica que o povo tomou gosto de ir às ruas. Ao mesmo tempo, aconteceu um tipo de compensação prazerosa: substitui-se momentaneamente a realidade virtual das redes sociais, onde não há contato físico, pelo realismo material do outro, mesmo que fosse para ser tocado, roubado, apalpado, beijado, etc. e tal. E assim caminha a irracionalidade das criaturas que se julgam racionais.

(*) Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, professora e escritora, autora de, entre outros livros, “Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – a ética da malandragem” e “América Latina – em busca do paraíso perdido”.

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