Déficit de vergonha

(*) José Nêumanne Pinto

Os desvalidos da sorte não têm onde morar no Brasil desde priscas eras. Desde sempre, aliás, se têm amontado em morros de difícil acesso e bairros na periferia das grandes cidades sem que a autoridade responsável pela ordem pública intervenha e resolva esse problema, que tem produzido efeitos maléficos e duradouros na paz social. Para se dar uma ideia desse tempo basta lembrar a origem da denominação de tais ocupações: favela, como é conhecida uma planta rústica encontrada nas cercanias de Canudos, no sertão da Bahia, durante as campanhas do Exército Brasileiro contra os beatos de Antônio Conselheiro, retratadas na obra-prima da literatura brasileira Os Sertões, de Euclides da Cunha. Hoje os bairros precários nas “coroas de espinhos” (apud dom Paulo Evaristo Arns) das maiores cidades do País não podem mais ser chamados de favelas, como dantes, em mais um eufemismo que desvia o assunto sem resolver o problema. Chamam-se agora comunidades, mas o drama em que nelas é encenado não apenas não foi resolvido como só se agravou.

Dados confiáveis do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que faltam mais de 6 milhões de moradias no Brasil. A palavra usada para denominar as ocupações de mais de cem anos na periferia das metrópoles – favela – liga esse fenômeno ao do êxodo rural e regional do campo para a cidade e das áreas mais pobres para as mais ricas, que oferecem trabalho com remuneração mais digna e condições mais decentes. Do ponto de vista cultural, a música popular (Asa Branca, de Luiz Gonzaga), a literatura e o cinema (Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, filmada por Nelson Pereira dos Santos) identificam a origem nordestina da maioria dessas vítimas. Seria simplismo em exagero relacionar o drama da falta de teto a tal fuga, mas o êxodo bíblico ainda está presente nas histórias de vida de pessoas mortas, feridas e desabrigadas em incêndios e desabamentos que assolam o cotidiano dessas comunidades.

A crise moral, política, econômica e financeira que desabou sobre a população em geral no desastre institucional provocado pelos dois desgovernos Lula e mais um mandato e meio de sua afilhada Dilma Rousseff teve o condão de agravar o problema e também aumentou o caos generalizado. Mas seria injusto concentrar toda a crítica nesse episódio, que não é atípico na História do Brasil, nem único do ponto de vista das causas da situação de miséria e desespero das famílias atingidas pelo descaso e pela indiferença de um poder público alienado, corrupto e mal gerido. Todos os gestores e todos os partidos têm sua parcela de (ir)responsabilidade nas raízes podres do problema e também na desídia da inexistência de políticas para atacá-lo como se deveria fazê-lo.

À época da ditadura militar, ficou célebre o Banco Nacional de Habitação, cuja sigla, BNH, se tornou praticamente uma senha para representar o acesso das camadas baixas à casa própria. Nunca, porém, esse esforço pôde sequer ser comparado com iniciativas bem-sucedidas no exterior. O caso mais radical que conheci pessoalmente foi o de Singapura, com déficit zero de habitações alcançado graças a um sucesso de gestão da elite chinesa que governa com punho de ferro a ilha estrategicamente situada na Ásia, que servia antigamente de escala de viagens entre o Ocidente e o Oriente e hoje é um importante centro de administração de dados por computador, em nossa civilização cibernética. Trata-se de um caso singular que o Brasil jamais teria condições de emular. Mas o que dizer do bem-sucedido negócio imobiliário dos Estados Unidos que permite acesso universal à moradia em planos de financiamento acessíveis a famílias sem alta renda? Há uma distância abissal em termos de PIB entre os ianques e nós outros, mas isso não justifica a incapacidade crônica de nossos gestores públicos de, pelo menos, amenizarem essa tragédia.

As desastradas gestões ditas socialistas do PT no governo federal exploraram com muito estardalhaço sua tentativa de suprir moradias com um programa de denominação sugestiva, o Minha Casa Minha Vida, de Dilma Rousseff. Mera fantasia de marketing! O melhor exemplo dessa farsa criminosa está contido na reportagem de Fabiana Cambricolli, Fábio Leite e Isabela Palhares, publicada na página A16 do Estado de domingo, Só 8% do Minha Casa Minha Vida acolhe faixa mais pobre, a partir de dados do Ministério das Cidades que “mostram que, desde 2010, quando o programa de habitação federal foi criado, menos de 5 mil das quase 57 mil unidades finalizadas foram destinadas a pessoas com renda até R$ 1,8 mil”. O noticiário sobre a roubalheira na contratação das obras e a precariedade da construção das unidades complementa o horrendo cenário desse tipo de exploração meramente publicitária, que por si só desnuda a imoralidade e a desfaçatez sem limites desses governantes.

Esse, contudo, está longe de ser o exemplo mais terrível da exploração política do criminoso déficit habitacional brasileiro. A reportagem do alto da mesma página em que foi feito esse registro relata a existência de 162 movimentos de sem-teto que exploram esse veio populista. Só rematados ingênuos ainda acreditam que essa miríade cometa apenas o crime de exploração da boa-fé dos pobres, que trabalham muito, ganham muito pouco e não têm tempo de desconfiar dos discursos de “luta social”, sob cuja bandeira se abrigam “revolucionários” marxistas como Guilherme Boulos, que chegou ao topo da carreira na condição de pretenso presidenciável do PSOL, legenda à esquerda do PT de Lula e Dilma. O incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida, perto do Largo do Paiçandu, no centro de São Paulo, expôs as entranhas desses grupos, que cobram aluguel e estão sob suspeita de conexões “heterodoxas” com o crime organizado.

Não convém dar azo a tais suspeitas, de vez que a polícia garante que as está investigando a partir de informações obtidas com os sobreviventes do incêndio e posterior desabamento do edifício, que de ícone do modernismo a sede da Polícia Federal virou um monte de escombros num terreno baldio. Entre as negativas de Boulos de sequer reconhecer o tal Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), que organizou e administrava a ocupação do prédio, e os depoimentos de sobreviventes, a prudência recomenda dar ouvidos a estes. Convém lembrar que até o presidente da República cometeu a temeridade de levar sua solidariedade aos desabrigados. Boulos, líder máximo do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), contudo, não deu o ar de sua graça no local.

Mais de uma semana depois da tragédia, Michel Temer (MDB), o governador Márcio França (PSB) e o prefeito Bruno Covas (PSDB) falaram, mas não agiram. Covas citou mais de cem prédios em situação similar à do que desabou. Mas não se tem notícia de que a União ¬– proprietária de muitos, incluído o palco do horror no feriadão do Dia do Trabalho –, o Estado e o Município tenham tomado providências efetivas para evacuar o Largo do Paiçandu, ocupado por desabrigados dispostos a manter distância dos sem-teto que pretendiam fazer-lhes companhia no local. E muito menos de que outros edifícios com problemas semelhantes (cujos riscos, aliás, Prefeitura, Corpo de Bombeiros e Ministério Público desprezaram solenemente) escaparão do destino do prédio que ruiu. Continuarão investindo no milagre de nenhum deles ter repetido o sinistro?

A verdade é que não houve na Rua Antônio de Godoy, nas proximidades da Avenida Rio Branco, um acidente. O incêndio e o desabamento que vitimaram Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, o Tatuagem, surpreendido pelo fogo quando tentava salvar a vida de outros moradores do prédio, não resultaram de mero acaso, ou falta de sorte. Na verdade, aquilo tudo foi um crime bárbaro. Em sua origem está o déficit de vergonha dos políticos brasileiros que estão nos poderes federal, estadual e municipal e nunca tomam conhecimento da tragédia habitacional, nem quando ela mata e desabriga. E também os da esquerda irresponsável, que explora a miséria do povo politicamente e ainda a transforma num negócio criminoso e lucrativo, diante dos olhos e ouvidos fechados de autoridades indignas dos cargos que ocupam, algumas delas por delegação popular. A tentativa de pôr a sujeira sob o tapete da semântica ao trocar “favela” por “comunidade” agora tem efeito mais grave: a impunidade dos exploradores da miséria popular e a cumplicidade com eles daqueles que o povo elege para resolver seus problemas. É o terrível retrato da crônica anunciada da tragédia brasileira.

(*) José Nêumanne Pinto é jornalista, poeta e escritor.

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