Ao contrário do que afirmam os eleitores de Jair Bolsonaro, integrantes de uma seita que recorre ao binarismo e ao maniqueísmo do pensamento para defender um político guindado ao patamar de salvador da pátria, as prefeituras tinham o direito lícito de demitir médicos brasileiros para aderir ao programa “Mais Médicos”, especialmente para adequar as despesas às receitas municipais, considerando que continua em vigência no País a Lei de Responsabilidade Fiscal, desrespeitada por muitos.
Em nenhum momento este portal, em notícia anterior, negou o fato de médicos brasileiros terem sido demitidos por ocasião da implantação do “Mais Médicos”, apenas afirmou que Bolsonaro mente ao afirmar que tais demissões ocorreram apenas para que médicos cubanos fossem contratados. Tal declaração é eivada pela leviandade, pois não se pode tratar como verdade absoluta aquilo que é uma mentira monumental.
É importante ressaltar que, diferentemente do que condenou ao longo da campanha em seus recorrentes ataques aos governos petistas, Jair Bolsonaro, que sequer estreou na Presidência da República, já começa a pautar seu futuro governo pelo viés ideológico. O imbróglio que se formou a partir do “Mais Médicos” é fruto de um discurso desnecessário, se considerado o fato de que sua postura, após 28 de outubro passado, deveria ser de estadista, não de candidato.
Discordar dos dogmas esquerdistas é um direito de Bolsonaro, mas como presidente eleito ele deveria saber que diplomacia é importante para a interação das nações. E nenhum ponto discordante será solucionado a partir de discursos provocativos ou ameaçadores, pelo contrário.
Jair Bolsonaro foi eleito na esteira da promessa esdrúxula de eliminar a esquerda e o comunismo, o que explica seu discurso truculento contra Cuba, o que não significa que o regime de Havana merece loas de todas as partes do planeta. Porém, para se alcançar algum tipo de avanço na ilha caribenha é preciso diálogo, não demonstração de força.
Como forma de reagir às declarações de Bolsonaro, marcadas por claras ameaças e ofensas aos cubanos, Havana decidiu desembarcar do “Mais Médicos”, retirando do Brasil aproximadamente 8,5 mil médicos. Foi o suficiente para o presidente eleito buscar desculpas para minimizar seu erro. E a sequência de desculpas foi patética, ao ponto de invocar a questão dos direitos humanos, assunto que Bolsonaro jamais deu importância ao longo de sua carreira política.
Como prega a sabedoria popular, mentira tem perna curta. E no caso de Bolsonaro isso se comprovou em pouco tempo. Em 2013, quando o Congresso Nacional analisava a Medida Provisória que criou o programa “Mais Médicos”, Bolsonaro, sempre virulento em suas declarações, disse no plenário da Câmara dos Deputados que o objetivo do programa era trazer para o Brasil agentes cubanos, o que é uma inverdade.
Na ocasião, em um de seus pronunciamentos, Bolsonaro condenou trecho da MP que permitia aos médicos cubanos trazer ao Brasil seus familiares. “A verdade, aos poucos, vem vindo à tona: eles querem trazer 6 mil médicos cubanos. Prestem atenção. Está na medida provisória: cada médico cubano pode trazer todos os seus dependentes. E a gente sabe um pouquinho como funciona a ditadura castrista. Então, cada médico vai trazer 10, 20, 30 agentes para cá.”
Cinco anos depois, o mesmo Bolsonaro, na tentativa de consertar o estrago que protagonizou, usa a questão do distanciamento que os médicos cubanos têm das respectivas famílias como desculpa para atacar o governo de Havana.
“Condicionamos à continuidade do programa Mais Médicos a aplicação de teste de capacidade, salário integral aos profissionais cubanos, hoje maior parte destinados à ditadura, e a liberdade para trazerem suas famílias. Infelizmente, Cuba não aceitou”, escreveu Jair Bolsonaro em sua conta no Twitter.
É verdade que cobrar coerência dos políticos brasileiros é quase missão impossível, mas o presidente eleito poderia ao menos não se expor dessa maneira, evitando situações de constrangimento provocadas pelo confronto de suas próprias declarações. Sendo assim, em qual Bolsonaro a população deve acreditar? No de 2013 ou no de 2018?
Em 2016, durante a discussão do projeto que tratava da prorrogação do “Mais Médicos” por mais três anos, Jair Bolsonaro e seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, apresentaram emenda para proibir os dependentes dos médicos intercambistas de “exercer atividades remuneradas, com emissão de Carteira de Trabalho e Previdência Social pelo Ministério do Trabalho e Emprego”.
Na justificativa da emenda, pai e filho afirmaram que a intenção era “limitar o estabelecimento de vínculos permanentes por parte dos dependentes dos médicos intercambistas estrangeiros”. Hoje, Bolsonaro mostra-se preocupado com os familiares dos médicos cubanos, como se cinco anos antes não tivesse adotado postura discurso contra essas mesmas pessoas.
Quem conhece os escaninhos da política nacional sabe que amnésia de conveniência é algo comum, o que não deixa de ser uma atitude torpe, mas é preciso que os descontrolados eleitores de Jair Bolsonaro reconheçam que o presidente eleito vem mentindo de forma recorrente para amenizar as consequências de um discurso tosco e descabido, marcado apenas pela intolerância ideológica. O governo que ainda não estreou começou mal, mas pode acabar em situação pior.