Discussão entre Lewandowski e advogado mostra que “pensar com o fígado” não muda o Brasil

O Brasil vive um momento de tensão, mesmo após o fim de um período eleitoral marcado por um crescente discurso de ódio, que ainda perdura e deve continuar por muito tempo. A vitória de Jair Bolsonaro deu a seus eleitores a falsa sensação de que tudo é possível, sendo que no mesmo cesto os direitos sufocam os deveres.

O episódio envolvendo o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), e um advogado, ocorrido na manhã desta terça-feira (4) em um avião que estava prestes a decolar do aeroporto de Congonhas, em São Paulo, rumo a Brasília, é o exemplo claro da lufada de intolerância que varre o País em todos os seus quadrantes.

Ao perceber a presença do magistrado na aeronave, o advogado Cristiano Caiado de Acioli, 39 anos, disparou: “Ministro Lewandowski, o Supremo é uma vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando eu vejo vocês”.

O ministro do STF, por sua vez, respondeu: “Vem cá, você quer ser preso? Chama a Polícia Federal”. Ato contínuo, o advogado rebateu: “Eu não posso me expressar? Chama a Polícia Federal então”.

Logo após o pouso da aeronave em Brasília, Cristiano de Acioli declarou: “Eu, na minha liberdade constitucional de me manifestar, disse que tinha vergonha do STF e esse ministro me ameaçou de prisão. […] Eu enquanto cidadão gostaria de deixar a minha nota particular de desagravo, porque a gente ainda vive numa democracia”.

“Eu não sou um presidiário tentando dar entrevista. Não sou uma presidenta que vocês estão querendo ou não dividir meus direitos políticos”, continuou o advogado, em referência aos petistas Lula e Dilma Rousseff, que tiveram casos relatados pelo ministro Lewandowski.

“Sou apenas um cidadão que me dirigi respeitosamente ao ministro Lewandowski para fazer uma crítica do que eu sinto e do que eu penso. Eu amo o Brasil, eu não admito o meu direito ser tolhido. […] É inadmissível. Uma pessoa que deveria ser a guardiã da Constituição. Quem está acima do Supremo? Quem vai responder pelos atos do ministro de ter me ameaçado de me prender?”, questionou o advogado.

Viver em democracia não significa apenas gozar de direitos, mas também e principalmente cumprir deveres – que não são poucos. Mas a sociedade só consegue ver um lado do todo. É esse binômio – direitos e deveres – que sustenta o tão falado Estado de Direito, que muitos desconhecem o real significado.


A Constituição Federal garante em seu artigo 5º, inciso XIV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”, devendo ser respeitados os direitos e a reputação de terceiros. É o que estabelece o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), do qual o Brasil é signatário (Decreto nº 678/92).

O advogado pode discordar das decisões dos ministros da Suprema Corte, mas alegar que abordou Lewandowski “respeitosamente” é devaneio de conveniência. Em regimes dito democráticos há maneiras outras de manifestar o descontentamento, não da forma como ocorreu no interior da aeronave que estava prestes a decolar para a capital dos brasileiros. Aliás, o UCHO.INFO há muito vem condenando esse tipo de manifestação pública contra julgados e julgadores, como tem ocorrido desde o início da Operação Lava-Jato.

O advogado que tanto exaltou a lei para emoldurar sua indignação, deveria saber que o artigo Código Penal classifica o desacato como crime.

Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

Desacatar significa “menosprezar a função pública exercida por determinada pessoa. Ou seja, ofende-se o funcionário público com a finalidade de humilhar a dignidade e o prestígio da atividade administrativa”.

Há no País uma interpretação equivocada – quase pasteurizada – acerca da livre manifestação do pensamento. Entre externar uma opinião e recorrer ao desacato para fazer valer o pensamento existe uma considerável e inequívoca diferença. Esse cenário de oximoros esbarra no desejo da opinião pública de que a Justiça julgue de acordo com a vontade da sociedade, não com base no que determina a legislação vigente. Isso significa que a população clama por justiçamento, não por justiça, o que é perigoso em termos de convívio.

O entrevero desta terça-feira é fruto de um acúmulo de situações marcadas pela dubiedade e que deveriam ser evitadas pelo Judiciário, mas a soberba de alguns magistrados ocupa o espaço que deveria ser destinado à lógica.

Por outro lado, a pasmaceira do STF diante de episódios pontuais leva a sociedade a acreditar que tudo é permitido, inclusive o desacato. Quando Eduardo Bolsonaro disse que para fechar o Supremo bastariam um soldado e um cabo, a Corte deveria ter reagido dura e prontamente, enviando à população a mensagem de que a lei deve ser respeitada por todos, indistintamente. Até porque, se Sérgio Moro foi guindado ao posto de Don Quixote bolsonarista, não há razão para afrontas dessa natureza.

O UCHO.INFO não está a defender o ministro Ricardo Lewandowski nem a “condenar” o advogado Cristiano Caiado de Acioli, mas é necessário colocar muita água fria no fervilhante caldeirão de intolerância em que se transformou o País. “Pensar com o fígado” é a melhor receita para mudar o Brasil?