A conivência espúria da Oi com rede “cítrica” de franqueadas a partir do Vale do Paraíba, em SP

(Divulgação)

Necrópoles, inevitavelmente, têm esqueletos, até porque existem para tal fim. Alguns aterrorizantes, outros nem tanto. Em muitos setores do cotidiano também existem catacumbas, em alguns casos com direito a fantasmas e outros ingredientes macabros. E quem tem pavor de assombração que se cuide.

No Brasil, berço do “jeitinho” e terra natal do “faz de conta”, esqueletos circulam pelo mundo dos negócios, muitas vezes com a conivência canhestra daqueles que deveriam mandá-los de volta às respectivas sepulturas. Isso faz lembrar “Incidente em Antares” (1971), último romance do genial escritor Érico Veríssimo, que na obra narra, com dose acertada de humor, a greve dos coveiros de uma cidade. Com a paralisação dos coveiros, os mortos não sepultados adquirem “vida” e decidem vasculhar a vida de parentes e amigos, revelando a degradação moral da sociedade local.

Esse introito serve para reabrir caminho a um assunto que recentemente mereceu destaque no UCHO.INFO: a complacência e a conivência da operadora Oi, em recuperação judicial, com métodos pouco republicanos e nada ortodoxos de alguns dos seus franqueados. O que não significa envolvimento direto da empresa nas transgressões, mas o velho ditado “diga-me com quem andas e dir-te-ei quem é” cai como fina luva para uma companhia que precisa manter a confiança dos credores e resgatar a dos consumidores. Aliás, o sempre bem-humorado Millôr Fernandes, de carona no mencionado dito popular, lembrou certa feita que Judas andava com Jesus e vice-versa.

Aos fatos

Em matéria publicada no dia 4 de abril, noticiamos que a Oi intermediou, monitorou e endossou a venda de uma franquia localizada em São Paulo para um franqueado de Brasília. Ao novo proprietário da franquia paulista a operadora de telefonia passou a fornecer informações comerciais, relatórios de vendas, acesso a base de dados e adendos negociais, como comprovam e-mails trocados entre as partes – executivos da Oi e o franqueado. Por si só o comportamento da operadora confirma a legalidade e a idoneidade da transação, não sem antes reconhecer, de chofre, o direito adquirido, tema abordado de forma clara na matéria anterior.

Para os que gravitam na órbita dessa epopeia que foge aos ditames da lei, a publicação primeira foi rotulada de “missa encomendada”, mas o capítulo atual da série mostra a seguir que os protagonistas do escândalo têm motivo de sobra para tanta preocupação, o que explica o ataque rasteiro que nos dedicam.

A transação comercial mencionada na matéria anterior tinha como vendedor Eduardo Gonçalves Farinha, empresário de São José dos Campos (SP), no Vale do Paraíba, e “proprietário” de várias franquias da Oi. Uma das franquias pertencentes a Farinha foi vendida ao franqueado da Oi de Brasília, que para colocar o novo negócio em marcha investiu recursos, assumiu compromissos e contratou funcionários, o que, de acordo com a legislação vigente, significa encargos trabalhistas, além de salários e benefícios.

Como mencionado na reportagem anterior, a operadora Oi, sem qualquer notificação prévia e motivo justificável, informou ao novo proprietário da franquia paulista que o processo de credenciamento estava suspenso. Contudo, não se pode suspender um credenciamento tido como concluso pelos motivos acima expostos, sem considerar o “direito adquirido”.

Não obstante, a Oi, mesmo tendo decidido de forma arbitrária e intempestiva suspender um processo de credenciamento lícito e finalizado, não poderia repassar a terceiros os valores devidos ao novo proprietário (de fato) da franquia paulista, uma vez que a ele cabia receber os resultados financeiros decorrentes das vendas feitas em nome da operadora de telefonia. E se a Oi aceitou e contabilizou as vendas feitas pelo novo proprietário da franquia de São Paulo na condição de seu preposto comercial, é porque o credenciamento era justo, lícito e concluso.

Império cítrico

Causa espécie o fato de a Oi ter não apenas intermediado a venda da franquia paulista ao franqueado de Brasília, mas endossado a transação sabendo que o empresário Eduardo Farinha não tem uma só franquia registrada em seu nome.

Todas as franquias da Oi controladas por Eduardo Farinha estão registradas em nome de terceiros, como comprovam os registros da Receita Federal do Brasil. Isso pressupõe que Farinha tem algo a esconder ou fatiou seu negócio na área de revendas de telefonia para escapar do Fisco. Afinal, a opção pela modalidade “EIRELI” (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada) de muitas das empresas denota que seu objetivo é pagar menos impostos.

Porém, chama a atenção o fato de nos registros da Receita o contabilista responsável, na maioria dos casos, ser sempre o mesmo. Paulo Nogueira, cujo e-mail aparece na base de dados da Receita, pode ser a prova do elo entre Farinha e os proprietários de direito, mas não de fato, das empresas. Das oito empresas que Eduardo Farinha diz ser proprietário, seis têm na base da Receita Federal o e-mail de Paulo Nogueira.

A Oi, em prática nada recomendável, credenciou como franqueadas todas as empresas de propriedade (sic) de Eduardo Gonçalves Farinha, ciente de que estavam registradas em nome de terceiros. Isso fere a boa conduta empresarial e, acima de tudo, aquilo que prega a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Ministério das Comunicações, o Ministério da Economia, a Receita Federal, a Comissão de Valores Mobiliários, o Ministério Público, a Polícia Federal e a Polícia Civil, que serão informados na sequência sobre os fatos.

Além de ter ciência de que as empresas controladas por Farinha estavam – como ainda estão – em nome de “laranjas”, a Oi foi comunicada por um dos seus executivos (gerente de franquias no estado de SP), em 2018, sobre o risco que isso representava para a companhia. Ao contrário do que se poderia imaginar, atropelando todas as normas de “compliance”, o executivo que fez o alerta foi demitido, enquanto que Eduardo Farinha continuou sendo paparicado pela diretoria regional da Oi, o que explica o fato de ter em suas mãos quase 70% da operação comercial da empresa no estado de São Paulo.

Esse panorama revela de forma assustadora que os esqueletos começaram a sair da catacumba da Oi, que no âmbito do processo de recuperação judicial mostrou-se bem-intencionada, até porque naquele momento era preciso salvar do naufrágio um transatlântico que adernava em meio ao maremoto. Porém, nos subterrâneos o “bom-mocismo” parece não conviver bem

Surgirão argumentações para contrapor o conteúdo desta matéria e das próximas, assim como possíveis intimidações, até porque estamos no Brasil, mas alguns detalhes podem desmontar facilmente essa estratégia retrógrada e típica de nações em que ainda impera o enfadonho “você sabe com quem está falando?”.

A Oi pode alegar que o processo de credenciamento das empresas controladas por Eduardo Farinha seguiu o padrão da operadora, mas o que se espera de uma companhia séria é que ao menos uma checagem rasa sobre os interessados na franquia seja feita. Os sócios dessas empresas franqueadas sequer compareceram à sede da Oi em São Paulo para assinar os contratos. E se isso aconteceu, que a operadora de telefonia apresente os registros da recepção para comprovar a entrada de cada um no edifício-sede. O máximo que conseguirá provar é que nos dias das assinaturas dos contratos foi o “globetrotter” Eduardo Gonçalves Farinha quem esteve no prédio da Oi.


Tentáculos farinhentos

Segundo apurou o UCHO.INFO, o escritório de Eduardo Farinha funciona no número 140 da Rua Bacabal, em São José dos Campos, importante cidade do Vale do Paraíba, no interior paulista. Por coincidência, no mesmo endereço funciona uma das empresas de Farinha, a GDK Telecom e Serviços Ltda., registrada em nome de Marlene Martins de Brito. No documento de registro consta que a GDK funciona na loja número 104, mas o edifício tem apenas salas comerciais (foto abaixo)

A mesma Marlene Martins de Brito aparece como sócia da empresa DKV Telecom e Serviços Ltda., com sede no número 222 da Rua dos Andradas, em Pindamonhangaba, no interior paulista. A DKV, franqueada da Oi, é de “propriedade” de Eduardo Gonçalves Farinha.

Causa espécie o fato de nos registros da Receita Federal a DKV ter como informações de contato o telefone e um endereço de e-mail de escritório de contabilidade localizado na cidade de São Paulo, no bairro de Vila Prudente, distante pelo menos 150 quilômetros. Além disso, o tal escritório de contabilidade funciona em um local que não condiz com a pompa e a circunstância da vida de Eduardo Farinha.

A DKV Telecom tem uma filial na cidade paulista de Guaratinguetá, que de acordo com dados atualizados da Receita Federal funciona no número 114 da Rua Comendador João Galvão, tendo como sócia Sonia Ferreira de Souza Marques.

Ao que parece, Sonia Marques é uma empreendedora arrojada, pois ela consta como sócia da empresa Legacy Comercio E Representação Comercial, que tem como sede o número 937 da Avenida Arthur Costa Filho, em Caraguatatuba litoral norte de São Paulo. Conforme apurou este noticioso, a Legacy também pertence a Eduardo Farinha, sendo que o processo de credenciamento como franqueada da Oi transcorreu normalmente, com os responsáveis da empresa de telefonia tendo ciência que o contrato social estava em nome de terceiros.

Tomando por base que há ao redor do planeta quantidade considerável de supersticiosos, o mesmo endereço mencionado acima (Avenida Arthur Costa Filho, 937 – Caraguatatuba) consta na Receita como sede da empresa Mares Telecom. Contudo, um detalhe chama a atenção no caso da Mares Telecom: a proprietária de direito da empresa, de acordo com o contrato social, é Juliana de Souza Pereira, residente em São José dos Campos.

Ultraja o bom senso logístico uma pessoa que reside na mais importante cidade do Vale do Paraíba ser dona de um negócio em Caraguatatuba, distante 90 quilômetros.

Há nesse caso um ultraje ao bom senso financeiro: a dona da empresa (Mares Telecom) com capital social de R$ 100.000,00, devidamente integralizado, como consta do contrato social (detalhe do fac-símile acima), reside em um imóvel (foto abaixo) cujo valor e aparência não condizem com o negócio que detém. A exemplo das empresas acima mencionadas, a Mares Telecom também pertence Eduardo Farinha.

Outra empresa que, segundo relato, pertence a Farinha é a Moggi Telecom, com sede na cidade de Mogi Mirim, no interior de São Paulo, na Rua Chico Venâncio, 113 – loja 29. A empresa está registrada em nome de Ingrid Câmara de Souza.

Dada a largada

Muito estranhamente, algumas empresas que, segundo informações obtidas junto a um ex-gerente comercial da Oi, pertencem de facto, não de jure, a Eduardo Gonçalves Farinha foram abertas em sequência no ano de 2018, tendo na maioria dos casos o mesmo contabilista como contato na base de dados da Receita Federal. São: Mares Telecom (15/06/2018), MGuaçu Telecom (15/06/2018), Moggi Telecom (14/07/2018), EP2 Telecomunicações (19/7/2018).

A GDK Telecom foi aberta em 6 de junho de 2017; a Zucchinesi Comércio e Serviços de Telefonia, em 22 de novembro de 2016; a Legacy Comércio e Representação Comercial, em 7 de dezembro de 2016.

Eduardo Gonçalves Farinha (foto acima) assumiu publicamente o compromisso de vender a empresa Mares Telecom, como sendo sua de direito, sabendo que estava registrada em nome de terceira pessoa. Mesmo assim, após informar à operadora Oi, através e e-mail (abaixo), que a empresa fora vendida ao franqueado de Brasília e assumido a venda em áudio enviado ao comprador (abaixo), a transferência não foi concluída.


A manobra covarde, eivada por sordidez empresarial, culminou com a interrupção abrupta da relação comercial entre a operadora Oi e o empreendedor (franqueado de Brasília) que assumiu a franquia de São Paulo, após o cortejo de Farinha.

Ver para crer

Diferentemente dos esmaecidos e covardes boatos que surgiram nos bastidores após a publicação da primeira matéria da série, no UCHO.INFO não se faz jornalismo de encomenda nem se tergiversa diante dos fatos. Denúncias são denúncias. E como tal são levadas a sério, desde que checada a autenticidade das informações. O que foi feito no caso em questão.

Que ninguém coloque em xeque o nosso jornalismo na tentativa de desqualificar o conteúdo da primeira matéria, pois até agora veio à tona apenas a ponta de um iceberg de lama que poderá, a depender do desfecho, levar os envolvidos a situações de extrema dificuldade. Além disso, a Oi terá de dar explicações a muitos órgãos e autoridades, lembrando que satisfações também merecem os credores de uma companhia que ainda ressurge das cinzas, assim como os que adquirem suas ações na Bolsa.

Desdenhar o nosso trabalho jornalístico é direito de qualquer um, mas revela desespero de quem tem algo a varrer para debaixo do tapete. Apenas para clarear o horizonte, facilitando o trabalho daqueles que insistem em não enxergá-lo da forma devida, não somos inexperientes a ponto de iniciarmos um trabalho de jornalismo investigativo sem a devida cautela e a necessária checagem prévia dos fatos.

Do escândalo que implodiu no final dos anos 70 a rede criminosa que operava nos intramuros do Vaticano às denúncias que levaram à Operação Lava-Jato, passando pela reconhecida colaboração com a CPMI dos Correios e pela divulgação exclusiva das gravações do caso Celso Daniel, à denúncia que desmascarou o finado Eurico Miranda (ex-presidente do Vasco da Gama) e o minucioso trabalho jornalístico que prefaciou a Operação Satiagraha, entre tantos outros trabalhos de jornalismo investigativo, nosso jornalismo não nasceu ontem nem somos francos atiradores. São décadas de experiência nesse ofício imprescindível à democracia e à defesa da sociedade.