(*) Ucho Haddad
“Todo ente nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso.” (Jean-Paul Sartre, em “A Náusea”)
Tempos estranhos esses que vivemos. Tudo vale para levar adiante o que ninguém sabe o que é ou consegue enxergar por inteiro. Importa apenas que os alçados ao cadafalso sejam suspensos pela corda da forca para o regozijo da massa ignara. Assim decide o Supremo Tribunal das Redes Sociais, que a despeito do bom senso e da legislação vigente no País condena de acordo com a direção do vento e a fúria da turba cibernética.
O frenesi do momento tem como epicentro o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, que, segundo o criminoso e dublê de delator Marcelo Odebrecht, recebeu do grupo empresarial familiar o codinome “amigo do amigo de meu pai”. Isso foi o bastante para rechear matéria jornalística que fez a alegria dos que querem passar o Brasil a limpo à base do pé de cabra, não sem antes levar ao delírio o grupelho liderado pelo procurador que pilota a força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba.
O codinome consta de e-mail enviado por Odebrecht a dois então executivos da empreiteira do grupo em 2007, mas somente agora, doze anos depois, as autoridades se deram conta da importância de um documento que passou despercebido, inclusive durante as negociações do acordo coletivo de colaboração premiada do grupo empresarial. Ora, se a tal mensagem eletrônica tem tanta importância, não havia razão para ter sido deixada de lado.
“Afinal vocês fecharam com o amigo do amigo de meu pai?”, perguntou Marcelo Odebrecht em e-mail enviado, em 13 de junho de 2007, a Irineu Berardi Meireles e Adriano de Seixas Maia. De acordo com Odebrecht, em esclarecimento enviado à Polícia Federal, a mensagem “Refere-se a tratativas que Adriano Maia tinha com AGU sobre temas envolvendo as hidrelétricas do Rio Madeira.”
Sobre o codinome, o empreiteiro criminoso esclareceu que ““Amigo do amigo de meu pai” se refere a José António Dias Toffoli. A natureza e o conteúdo dessas tratativas, porda, só podem ser devidamente esclarecidas por Adriano Maia, que as conduziu.”
Não importa o conteúdo do e-mail, muito menos a explicação dada à PF. O Supremo Tribunal das Redes Sociais (STRS), inflado pela turma de Curitiba, decidiu em caráter irrevogável: 1) Marcelo Odebrecht, que em entrevista à Folha disse, meses antes de ser preso, que não via problema no fato de a iniciativa privada interferir em assuntos do governo, é um criminoso contumaz, mas que será canonizado em vida apenas porque aderiu à delação premiada, sabe-se lá como foi obtida, mandando o PT pelo ralo. 2) Dias Toffoli, ministro do STF e atual presidente da Corte, é delinquente, pois assim quer a opinião pública, que acha trabalhoso viver em democracia e por comodidade burra prefere atropelar o Estado de Direito.
Não tenho procuração para defender Toffoli e sequer faria se constituído fosse para essa tarefa, assim como não estou a afirmar que o ministro é inocente ou culpado. Aliás, até prova em contrário todos são inocentes. Estou a defender direitos, algo que transcende a defesa de pessoas, envolvidas ou não em escândalos de corrupção e outros quetais.
O brasileiro não quer saber se amanhã poderá ser vítima do que ora defende com impressionantes cegueira e estupidez, já que no momento a ordem é revanche e nada mais. Como revanchismo leva a nada e só traz amarguras e consequências imprevisíveis, o melhor é ficar a atento aos desdobramentos dessa avalanche torpe.
Demonizar o STF ganhou status de missão imprescindível no momento em que ficou decidido que crime de caixa 2 deve ser julgado pela Justiça Eleitoral. Decidiu-se com base no que determina a lei, mas os Don Quixotes da Botocúndia não aceitam o contraditório. A decisão foi para muitos um golpe contra a Lava-Jato, operação que já dura mais de cinco anos e prendeu e condenou dezenas de criminosos. Será mesmo que a Lava-Jato foi para o espaço?
O movimento para alçar o ministro Dias Toffoli ao panteão da bandidagem começou segundos após a abertura de inquérito, no âmbito do STF, para apurar ameaças, ofensas e intimidações a integrantes da Corte e seus familiares. E os artífices do projeto de poder que corre nos subterrâneos ficaram magoados e precisavam a todo custo demonstrar tenacidade. A cruzada ganhou força com o empenho de alguns senadores para criar a CPI da “Lava Toga”, que acabou tropeçando na CCJ do Senado. Desde então, o País passou a assistir a ininterrupta queda de braços, que tem em uma das pontas estranho e perigoso projeto de poder, como já citado.
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, de determinar ao site “O Antagonista” e à revista eletrônica “Crusoé” a retirada do ar de matéria contra o ministro Dias Toffoli configura ato de censura, sem choro nem vela, que remete à trágica era plúmbea. Não justifica, principalmente porque a legislação brasileira prevê punição aos crimes de calúnia, injúria e difamação, com direito, se for o caso, a indenização, respeitado o devido processo legal.
A matéria jornalística em questão trata do codinome “amigo do amigo de meu pai”, que de acordo com explicação enviada por Marcelo Odebrecht à Polícia Federal refere-se a Dias Toffoli, que no ano de 2007 estava à frente da Advocacia-Geral da União. Como mencionei, Marcelo Odebrecht não é o paladino da moralidade pública, mas um criminoso que transformou a delação premiada na tão sonhada chave da cela em que esteve trancafiado por longos trinta meses. Por isso suas declarações e explicações precisam ser analisadas com dose redobrada de reserva. O que não significa que devem ser desconsideradas.
O documento contendo a explicação sobre o polêmico “codinome” nada representa sem qualquer declaração adicional, se de fato “amigo do amigo de meu pai” for Toffoli. Até porque, no esclarecimento não há menção de qualquer ato ilícito cometido pelo então advogado-geral. Mas o objetivo dessa epopeia dantesca era tumultuar e deixar o STF ainda mais na berlinda. Se essa era a missão, explicada está a confusão.
Desde os tempos de Pindorama, essa barafunda que muitos chamam de país é uma incansável usina de especialistas nos mais variados assuntos. No momento, os especialistas da vez são os que dominam temas relacionados ao Direito e às instâncias superiores do Judiciário. E que ninguém ouse contestá-los, porque a enxurrada de fúria não é pequena.
Se a matéria alvo de censura por parte do ministro Alexandre de Moraes tomou por base esclarecimento de Marcelo Odebrecht juntado aos autos da Polícia Federal, mas que acabou desentranhado, em termos técnicos a prova deixou de existir. Não importa que a prova está a viralizar nas redes sociais. E o que viraliza na rede é no mínimo uma piada em termos probatórios. Não se trata de duvidar ou colocar em xeque o trabalho jornalístico de “O Antagonista” e da “Crusoé”, mas de se ater aos fatos como realmente são.
O Supremo Tribunal das Redes Sociais, integrado por pessoas que decidem com base no “ouvi dizer” ou no “li em algum lugar”, não tem dúvida que Toffoli foi “denunciado” por corrupção, mesmo que no esclarecimento de Odebrecht sequer conste acusação a esse respeito (pelo menos é isso que sei até o momento).
Algumas pessoas estão a afirmar que o Judiciário tenta impor silenciosamente uma ditadura, quando na verdade isso está ocorrendo de forma sorrateira em outro vértice da confusão e sob a batuta de falsos moralistas. Nessa ópera bufa é preciso saber quem é quem, antes que seja tarde demais. Sendo assim, sugiro que cada um adote a devida cautela, evitando tomar partidos e acusações açodadas.
A opinião pública quer “sangue”, por isso, tendo a tela do computador como escudo virtual, dispara na direção dos ministros do STF adjetivos como “ladrões”, “corruptos”, “golpistas” e outros mais, sem saber ao certo como se dá o desenrolar dos fatos à sombra da lei.
O poder emana do povo, como ressalta a Carta Magna em parágrafo do artigo 1º, mas não se pode confundir com desobediência civil, situação bem diferente e perigosa, pincipalmente quando à espreita há um punhado de totalitaristas convictos à espera do momento do bote.
O que tenho visto é um misto de candidatos a Nero – querendo incendiar o País empunhando uma caixa de fósforos – com réplicas mambembes de Tomás de Torquemada – julgando a esmo debaixo da toga da ignorância –, como se o Supremo Tribunal das Redes Sociais fosse dono da última palavra. Contudo, quando as garras da lei lhes tocam à porta, recorrem ao Estado de Direito.
“Amigo do amigo do pai”, quem não foi? Fui amigo de vários amigos do meu pai, mesmo após sua morte precoce. Sou amigo de alguns até hoje, mesmo que mais velhos sejam. Há algum mal nisso? Creio que não! Na verdade, o mal maior está na insistência em fermentar e ampliar a desnecessária crise institucional que poderá abrir caminho para o pior.
Como escreveu Sartre em “A Náusea”, romance filosófico-existencialista publicado pela primeira vez em 1938, “para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura, é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida como se a narrasse.”
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.