Não temos vocação para Émile Zola, autor do artigo “J’Accuse”, publicado pelo jornal L’Aurore, em 13 de janeiro de 1898, sob a forma de uma carta ao então presidente da França, Félix Faure, em que generais da época são atacados nominalmente pelos erros cometidos no processo judicial envolvendo o polêmico caso Dreyfus.
“Meu dever é de falar, não quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele não cometeu”, escreveu Zola ao discorrer sobre o polêmico caso.
Em seu artigo, Zola foi contundente, principalmente considerando a época da publicação, assim como contundente é o jornalismo do UCHO.INFO, mas na mesma toada do autor de “J’Accuse”, não aliviamos a pena para quem quer que esteja no poder, nem para aqueles que se escondem atrás de fardas. Não obstante, jamais abandonamos a ética, a responsabilidade e o bom jornalismo, pois nosso compromisso primeiro é com o leitor, que tem o direito de ser informado com base na verdade. Apesar de estarmos a anos-luz de Émile Zola, o editor deste site já foi comparado a ele por um renomado professor de Ética e Filosofia de São Paulo.
Esse introito serve para lembrar que há muito criticamos Jair Bolsonaro por sua postura que não coaduna com a importância e a relevância do cargo de presidente da República, uma vez que governar uma nação democrática exige não apenas sabedoria e parcimônia, mas apreço às liberdades e ao Estado de Direito.
Bolsonaro, como afirmam alguns dos nossos leitores, é um petista com o sinal trocado, já que conseguiu o que Lula conquistou ao longo dos anos: formar uma massa de apoiadores abduzidos dispostos a rechaçar a qualquer preço toda crítica que lhe dedicassem. E o atual presidente não destoa do ex-metalúrgico, uma vez que repete seu comportamento sob a égide do direitismo burro e tosco.
A recente e fracassada investida contra o Congresso Nacional e a convocação da opinião pública para protestos contra o Legislativo e Judiciário transformaram-se em doloroso tiro no pé do governo, colocando em risco a aprovação de matérias de interesse do País e o futuro dos cidadãos.
Enquanto desfrutava do ócio momesco no Guarujá, no litoral paulista, o presidente, ladeado pelos filhos e assessores, disparou para sua rede de contatos vídeos convocando a população para os mencionados protestos. Com a divulgação pela imprensa do compartilhamento – a jornalista Vera Magalhães, do jornal “O Estado de S. Paulo”, foi quem descobriu e divulgou em primeira mão o ilícito presidencial –, Bolsonaro passou a acionar a roda da mitomania.
No primeiro momento, o presidente afirmou que o compartilhamento de mensagens a partir do seu celular tem caráter privado, mas depois preferiu dizer que a jornalista do Estadão faltou com a verdade ao noticiar o fato. Disse Bolsonaro que a notícia dada por Vera Magalhães não tinha fundamento, uma vez que o vídeo compartilhado era de 2015. Ora, se no vídeo aparecem imagens do ataque a faca que o próprio Bolsonaro sofreu em Juiz de Fora (MG), em 2018, como o vídeo pode ser de três anos antes.
Diante da farsa, o presidente da República resolveu adotar uma estratégia distinta, mas conhecida dos brasileiros que pensam. Como a crise institucional também passou à condição de ingrediente da instabilidade no mercado financeiro nacional, Bolsonaro afirmou que a alta do dólar é resultante do avanço do coronavírus. Não se pode negar esse fato, mas culpar o vírus por tudo é excesso de criatividade.
Pois bem, até a última terça-feira (25), o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, considerava o único caso confirmado de coronavírus no Brasil como uma simples “gripe”. Passadas algumas horas, Bolsonaro já promoveu o coronavírus à condição de culpado pela alta do dólar, como se a crise que ele e seus estafetas de plantão criaram não tivesse peso.
Alguém precisa avisar a Jair Bolsonaro que governar não é algo tão simples quanto preparar “pão com leite condensado”. E que na democracia os Poderes constituídos, a exemplo do que reza a Carta Magna, são independentes e harmônicos entre si. Resumindo, o Congresso não é agência de despacho do governo, assim como o Supremo Tribunal Federal nem mesmo em sonho é “puxadinho” do Palácio do Planalto, em que pese o devaneio dos bolsonaristas.
Enquanto “la nave va”, o presidente está preocupado com o projeto enviado ao Congresso que aumenta o prazo de validade da CNH e eleva a quantidade de pontos para a perda da carteira de motorista. Que Bolsonaro é um néscio em economia todos sabem, até porque ele assume tal deficiência publicamente, mas ser irresponsável a esse ponto ultrapassa a tolerância até mesmo do mais “zen” de todos os monges tibetanos.