Ano que foi sem nunca ter sido: Personagem de folhetim do século XXI

(*) Gisele Leite

O ano 2020 aquele que não existiu em termos práticos, pois logo em seu início nos surpreendeu com crise sanitária em escala mundial e, sem precedentes, decorrente da disseminação do Covid-19 (coronavírus).

Impondo ora quarentena, isolamento social e distanciamento social. No mundo todo milhares de vítimas fatais. Num cenário apocalíptico de caixões empilhados, em valas sucessivas e mal escavadas e infectando-nos com o medo da morte, a nós consumindo aos poucos.

Muitas famílias chorando por seus mortos, sem o direito velar ou fazer as exéquias. É incrível que uma sociedade tão tecnológica esteja completamente entregue diante de um vírus invisível, porém de efeitos devastadores.

Assim que a situação reconhecida como pandemia do Covid-19 pela OMS, diversas medidas de isolamento social foram determinadas, em todo o mundo, impondo séria restrição de circulação de pessoas, o confinamento em suas casas, e a paralisação quase plena da atividade econômica. Exceto, por aquilo que os poderes públicos entenderem por serem atividades ou serviços essenciais.

Uma avalanche de medidas impactou o ordenamento jurídico e, desde fevereiro com a Lei nº 13.979/2020 houve uma profusão de leis, medidas provisórias, portarias, regulamentos e, tudo para arquitetar uma legislação emergencial, muitas vezes polêmica, inconstitucional, e conflitante com os mais relevantes postulados jurídicos.

Cumpre destacar nesse caos pandêmico que nenhum direito fundamental é absoluto. Sem encontrar restrições diante da tábua axiológica de valores, não é livre para ir e vir, não há plena liberdade de expressão e nem liberdade negocial ou econômica que ultrapasse a necessidade de evitar a transmissão virótica e preservar vidas humanas.

A virose nos revelou a óbvia fragilidade da sociedade contemporânea, da comunicação ou do cansaço, onde tudo é direcionado em razão de alto nível de competitividade e conectividade.

E, pensamos tanto no momento futuro que fica mesmo difícil superar as frustrações com o presente. E, agora que o futuro praticamente desaparece ou, se torna uma miragem que alguns já ousam determinar como “novo normal”.

Precisaríamos daquela carta de tarô de Rimbaud (a do Vidente) para convocar os poderes das pitonisas e poetas e, convocar os filósofos e juristas para, enfim, conseguir erguer as balizas mínimas para a sobrevivência.

Enfim, foi a velocidade de disseminação virótica que norteou a guerra da economia mundial, onde os equipamentos de proteção individual (EPIs), remédios, máscaras e respiradores se transformaram em mercadorias valiosíssimas, sendo até retidas nos EUA.

A virose fermentou nossa solidão no mundo, onde concluímos que não há o suficiente para todos, nem remédios, nem hospitais e, muito menos, saúde pública.

A guerra como metáfora da doença conforme relatou Susan Sontag que é difusa e ampla, escrachando uma vida sem sentido, onde morrer é igualmente sem sentido, e a nos conduzir ao Estado de exceção, que tão bem vislumbrou Walter Benjamin, em seu livro “Testes sobre o conceito da história”. É diante das fragilidades humanas que surgem os oportunistas que se impõem e se consagram através do ardil da força.

Com a pandemia empreendeu-se a digitalização célere dos meios de comunicação, das formas de trabalhar e de nos relacionarmos, no controle de dados e, ainda, a instauração do biopoder digital que sendo soberano sabe de todos os dados e nos monitora o tempo todo, do celular, na internet, na televisão e, na sua movimentação bancária.

A vida humana é a revestida de sentido justamente para se tornar suportável, apesar pelo fato de sermos finitos e contingentes. Ainda que sob o isolamento social, precisamos dispor desses vínculos emocionais e afetivos com amigos, parentes, e até desconhecidos. Pois, além de preservar a vida biológica, precisamos principalmente de desejo, fé e esperança.

Não fosse a desinteligência governamental que ainda nos enreda em crise institucional e política, poderíamos até entender que tudo é provisório, mas suas consequências ainda são desconhecidas. Chego a acreditar que não apenas o aparelho respiratório e cardíaco que é afetado com a dita virose, é também com o cérebro e a saúde mental das pessoas que são capazes de ignorar expressivo número de mortes e, ainda, responder com eloquência bestial: E daí?

(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.

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