Com direito a ludibriante jogo de palavras, governo edita nova portaria sobre aborto em caso de estupro

 
O Ministério da Saúde publicou nesta quinta-feira (24) uma nova versão da portaria sobre o procedimento de aborto nos casos em que a gravidez ocorre em decorrência de estupro.

O novo texto foi divulgado um dia antes de o Supremo Tribunal Federal começar a julgar os questionamentos feitos à portaria anterior, publicada no final de agosto, que estabeleceu parâmetros que causaram indignação em grupos de defesa dos direitos humanos, como a previsão de que os médicos informassem às gestantes vítimas do crime de estupro sobre a possibilidade de ver o feto no ultrassom.

Este último ponto foi retirado do texto publicado nesta quinta-feira. Contudo, o ponto central do texto anterior continua valendo: a exigência de que os médicos informem previamente a polícia caso atendam alguma gestante que procure um procedimento de aborto legal em caso de estupro. Neste caso, houve apenas uma mudança cosmética. A palavra “obrigatoriedade” despareceu do novo texto, abrindo espaço para o entendimento de que os médicos “devem comunicar o fato à autoridade policial responsável”.

O novo texto também prevê que os médicos tenham que agir para “preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial ou aos peritos oficiais, tais como fragmentos de embrião ou feto com vistas à realização de confrontos genéticos que poderão levar à identificação do respectivo autor do crime”.

Desde 2005, as normas para a prática do aborto em casos de estupro desobrigavam as vítimas de apresentar Boletim de Ocorrência para realizar o procedimento.

Além da questão do ultrassom, outro ponto da portaria anterior que que não consta da nova envolve o termo de consentimento que deve ser assinado pelas vítimas que buscarem o procedimento.

Ele já era obrigatório antes da portaria de agosto, mas o Ministério da Saúde havia adicionado ao termo uma lista de possíveis complicações decorrentes do aborto, sem que apresentar um contexto específico.

Todos esses pontos da portaria publicada em agosto foram interpretados por grupos de defesa dos direitos humanos como uma forma de intimidar vítimas de estupro e satisfazer a base fundamentalista cristã que apoia o governo.

Tal versão da portaria acabou sendo alvo de duas ações no STF. Uma delas foi apresentada pelo Instituto Brasileiro das Organizações Sociais de Saúde (Ibross). A outra, por cinco partidos de oposição – PT, PCdoB, PSB, PSOL e PDT.

 
Ao publicar a nova versão, o governo explicitou que quer tentar esvaziar o julgamento marcado para sexta-feira, já que a nova portaria revoga o texto anterior. O governo Jair Bolsonaro já tentou esse tipo de manobra antes, com decretos envolvendo a flexibilização do acesso a armas e a demarcação de terras indígenas. Em ambos os casos, as tentativas foram julgadas inconstitucionais.

Em sua conta no Twitter, a antropóloga Debora Diniz, uma das referências nacionais sobre o tema do aborto, afirmou que a nova portaria representa “uma chacota com o STF pelo jogo de palavras”. “O dever do médico de comunicar a polícia ficou ainda pior: agora há referência legal para intimidar os médicos”, afirmou.

Como citou a antropóloga, o “jogo de palavras” representa uma chacota com a máxima instância do Judiciário, uma vez que “dever” e “obrigação” são vernáculos sinônimos e que se completam. Não é ousadia gramatical afirmar que as duas palavras, que têm o conceito da imposição, podem ser substituídas por “múnus”, dever obrigatório de alguém. E se o objetivo do governo era ludibriar a Corte, o tiro poderá sair pela culatra.

A portaria anterior havia sido editada dias após uma polêmica gerada pelo caso de uma criança de 10 anos, que engravidou após ser vítima de seguidos estupros desde os 6 anos. Fanáticos religiosos e antiaborto tentaram impedir a menina de interromper a gravidez e chegaram a organizar um protesto em frente ao hospital onde a vítima foi atendida. Ela precisou se deslocar a outro estado para ter acesso ao procedimento após médicos se recusarem a fazê-lo.

A criança teve também seu nome divulgado em redes sociais pela extremista Sara Giromini, conhecida pelo nome Sara Winter, que é alvo de inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) que apura os protestos antidemocráticos.

De acordo com o jornal “Folha de S.Paulo”, há suspeita de que o vazamento da identidade para a extremista tenha partido do círculo da ministra Damares Alves, que comanda a pasta da Família e é conhecida pelas suas posições ultrarreligiosas. Giromini já trabalhou para o ministério.

O diário paulistano antecipou que a ministra Damares Alves chegou a oferecer privilégios ao Conselho Tutelar da cidade onde vive a vítima, com o objetivo de convencer seus membros a se juntarem aos esforços de barrar o aborto. A ministra nega que tenha tentado prejudicar a criança.

A portaria de agosto também marcou mais um episódio em que o presidente inseriu sua agenda particular no Ministério da Saúde. Com o general Eduardo Pazuello no comando da pasta, Bolsonaro não tem encontrado dificuldades para forçar a pasta a adotar procedimentos duvidosos como a promoção da cloroquina e a publicidade dos “curados” da pandemia, em contraste com os dois titulares anteriores da pasta, Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta, que se opuseram às investidas do presidente.

Há um movimento escancarado no governo, capitaneado pelos radicais da fé, que tenta transformar a Bíblia em Carta Magna, quando esta, a Constituição, é que deveria ser a bíblia do cotidiano nacional. Enquanto a parcela de bem da sociedade não esboçar reação, insistindo em manter silêncio obsequioso diante dos escárnios oficiais, os fundamentalistas continuarão empurrando o País na direção do retrocesso e do obscurantismo. (Com agências de notícias)

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