Que mané carnaval?

(*) Marli Gonçalves

Atrás do trio elétrico só vai quem quer morrer. Inacreditável ter de ficar imaginando onde é que foi parar um mínimo de bom senso nesse país completamente desorientado, dolorido, ameaçado, mortal. E ridículo. Carnaval virtual? Lives de carnaval? Festinhas, bloquinhos? Coleção de desfiles de escolas de samba na madrugada da tevê? Jornalistas fantasiados?

Alegria, alegria, você está no Brasil, onde se é praticamente obrigado a achar tudo normal, legal, engraçado. Onde o Carnaval precisa ser festejado de qualquer forma, nem que seja dançando em cima de túmulos de mais de mil pessoas morrendo diariamente, sambando em cima de leitos onde as pessoas usam sim máscaras, mas de oxigênio. Quando o oxigênio existe para lhes dar ar, e o leito puder estar disponível. Onde o já está atrasado. O país que bate palminhas e acha legal ficar vendo aviões trazendo conta-gotas para que possamos produzir punhadinhos de vacinas. Que tem um presidente que mente, um ministro da Saúde que nos deixa é doentes cada vez que o vemos tentar disfarçar sua incontrolável incapacidade.

Skindô, skindô, onde estão as vacinas que acabam – acabam, não tem, não existem, não estão prontas nem distribuídas – bem no meio de uma campanha que não alcançou ainda nem os 3% da população, de autoridades e autoritários cheios de moral, mas onde não houve preocupação em comprar de mais variadas fontes para garantir o fornecimento básico.

A vacina CoronaVac, do Butantan – que até virou samba, funk, rap, dancinha! – a única que começou e acelera um pouco o fim dessa angustiante espera. A que vemos ser comemorada aplicada em nossos idosos sorridentes estampados nas redes sociais, e que parece surtir efeito pelo menos para reforçar a importância da imunização.

A espera numa fila que todo dia, toda hora, vemos ser furada, com um plano de vacinação nacional sem pé nem cabeça, muito menos fiscalização. Ainda manipulado politicamente para aplacar iras de grupos corporativos que se apresentam como se suas vidas valessem mais do que outras.

Temos de fazer um carnaval sim. Mas no sentido de não parar de gritar, denunciar, expor esses absurdos. Uma festa pagã na qual estranhamente teremos é de passar esses dias rezando, e muito, para sobreviver a eles, para continuar esperando a ressurreição. Conclamar que as pessoas tenham um mínimo de discernimento e não nos façam sofrer ainda mais nos próximos dias, e de novo, e de novo, isso depois de vermos os resultados catastróficos das festas de fim de ano, das festas clandestinas, das praias lotadas. Do resultado do negacionismo, das notícias falsas, da ignorância cega e desmascarada. Essa montanha russa diária de médias móveis de contaminados e mortes que parece que ninguém percebe o quão alto estão os seus riscos.

Parece, e é, loucura, a “preocupação” com o Carnaval, se será feriado, ponto facultativo, e aí se descobre que já não era, a gente é que enforcava esses dias nessa festa que nos últimos anos já se dava durante quase todo o mês, nas ruas, antes até das avenidas e suas datas.

Claro que teremos saudades dos carnavais que passaram, que passamos. Mas lembrem-se que o do ano passado, 2020, já foi bem esquisito, a névoa daquela doença que se espalhava pelo mundo pairava sobre as multidões, e poucos dias depois dele já assistíamos, perplexos, a realidade chegando, as ruas vazias, o que jamais imaginamos viver, pandemia declarada, a peste, um século depois.

Qual a dificuldade de entender que sem vida não há a tal economia? Muito menos a tal alegria. Como podemos ver esfregadas em nossas fuças as tais festas clandestinas, jovens sem noção, ingressos a preços exorbitantes, sem que conheçamos exatamente quem são esses bandidos organizadores, sem que eles sejam penalizados duramente? Muito triste ver, inclusive, comunidades respeitadas, como as LGBTs, também promovendo essas cirandas da morte.

Nessa toada o que veremos é uma Quarta-feira de Cinzas sendo estendida por muito mais tempo. O cheiro de queimado da luta contra a corrupção já pode ser sentido, e as máscaras continuam caindo, das caras, narizes e queixos.

Sentadinha aqui, batendo o pé, esperando o Carnaval chegar, passar. Esperando a vez na fila da vacina, essa fila que não anda, porque sempre tem alguém entrando lá na frente, e acabando com o sentimento que cada vez mais escasso fica: a esperança de que teríamos aprendido e que sairíamos melhores disso tudo.

(*) Marli Gonçalves – Jornalista, consultora de comunicação, editora do Site Chumbo Gordo, autora de “Feminismo no Cotidiano – Bom para mulheres. E para homens também”, pela Editora Contexto. À venda nas livrarias e online, pela Editora e pela Amazon.

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