(*) Gisele Leite
Em 1992, quando o motorista se sentou à frente de deputados e senadores, a Constituição federal brasileira ainda não tinha quatro anos de idade, estava em plena infância. E o motorista depôs na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito gesticulando ativamente com as mãos. Estava visivelmente nervoso e não era à toa. As histórias, que narrava, tratavam de levar e trazer dinheiro em espécie e sem origem declarada para pagar as contas da casa do então Presidente da República.
Mais tarde, os telejornais apontavam para a sala lotada da CPI, preenchida não apenas por parlamentares, mas também assessores, e muitas pessoas de pé e sentada.
Já atrás da mesa, no meio metro até a parede, havia amontoado de outras pessoas que se espremiam, talvez desejando de alguma forma aparecer nas fotografias. Enfim, não ocorreu momento sem que os flashes não pipocassem. Na ocasião, Fernando Collor de Melo não sobreviveria àquela CPI e, assim, progressivamente e, aos poucos, foram as CPIs integrando o cenário da Nova República. E, a história se repede, afinal é visível que o atual Presidente da República também está temeroso com a abertura de uma CPI.
É tradição no país a realização de CPIs, e a primeira ocorreu logo um ano depois da independência. Quando se imaginava que o governo não fosse despótico? Quando o Barão de Montesquieu dividiu em três poderes de igual estatura, jamais imaginou que a tônica seria o desequilíbrio. Afinal, a administração da coisa pública, conforme positivado nas leis e a avaliação sobre as leis deveriam ser sempre cumpridas.
Eis a capacidade do Legislativo em fiscalizar o que seja de interesse público, conforme se dá pelas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) é importante para a saúde da democracia e da República.
Somente duas constituições brasileiras não consideraram a existência de CPIs, a de 1834, a de Dom Pedro I e, a fascista de Getúlio Vargas de 1937. E a CPI é de todo um controle indispensável pois a divisão idealizada pelo barão francês tinha exatamente o fito de evitar a corrupção. E, para ele, a corrupção era o governante que concentrava demasiadamente o poder em suas mãos.
De toda forma, há justos motivos para a investigação parlamentar que se tornou icônica da República brasileira que nascera em 1988. Afinal, as CPIs angariaram maiores poderes (1).
As comissões parlamentares de inquérito terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais”, escreveram os constituintes no artigo 58 da Carta Magna.
Portanto, os parlamentares têm alguns dos poderes de juiz e têm poder de investigar simultaneamente. Podem quebrar sigilos telefônico, fiscal, bancário. Podem convocar testemunhas à revelia, de forma coercitiva. Têm voz de prisão, quando há flagrante.
Contudo, existem limites, pois não podem, como julgadores, decretar uma escuta telefônico, tampouco possuem o poder de condenar. O Parlamento não pode investigar atos políticos do Executivo que tratem da segurança nacional ou da política externa. Igualmente não podem se intrometer na negociação de tratados internacionais.
Igualmente, não pode inquirir sobre as decisões soberanas do Judiciário. Porém, pode investigar a administração do Judiciário e, também como o Executivo lida com a coisa pública. Comprar cloroquina ao invés de medicamentes para o kit intubação, por exemplo, é um erro crasso.
Convêm assinalar que as CPIs obedecem a um rito. Há um devido processo legal a ser observado, quanto aos depoimentos, por exemplo, são sempre feitos por uma só pessoa, não sendo permitido ouvir duas testemunhas simultaneamente. Depois, se for necessário, são permitidas acareações (se bem, que na prática, se revelem inúteis).
E, para auxiliar nas investigações, quaisquer documentos públicos podem ser requisitados e, se houver alguma má vontade, os deputados e senadores possuem poder de determinar buscas e apreensões. Convém frisar que as CPIs não são plenipotenciárias. Pois têm que investigar exatamente aquilo a que se propuseram a conhecer…
No entanto, os poderes das CPIs não são idênticos aos dos magistrados, já que estes últimos tem alguns poderes assegurados na Constituição que não são outorgados às Comissões Parlamentares tendo em vista o entendimento do Supremo Tribunal Federal (MS 23.452) de que tais poderes são reservados pela constituição apenas aos magistrados. Assim, a CPI não pode: Determinar de indisponibilidade de bens do investigado; decretar a prisão preventiva (pode decretar somente prisão em flagrante); determinar o afastamento de cargo ou função pública durante a investigação; e decretar busca e apreensão domiciliar de documentos.
Não pode, como uma rede de pesca, fisgar o aleatório e partir dali. Confirma-se, indubitavelmente, que as CPIs são instrumentos fundamentais para a saúde da democracia e, são, de fato, constituem um direito da minoria. Tanto que se um terço dos representantes de uma das Casas assinar, a CPI forçosamente terá que acontecer. Assim, jamais é negado à oposição o seu direito constitucional de investigar e fiscalizar o governo.
Foram várias as CPIs que abalaram o Brasil nos derradeiros vinte e três anos, a saber: a CPI de PC Farias em 1992, a CPI dos Anões do Orçamento em 1993, a CPI do Judiciário em 1999, a CPI do Banestado em 2003, a CPI dos Correios em 2005, a CPI dos Bingos em 2006 e a CPI dos Sanguessugas no mesmo ano. E, ainda não podemos esquecer a CPI do Mensalão em 2005 e, a última CPI do Cachoeira em 2012.
A partir de 2010, passamos a vivenciar a decadência da Nova República que finalmente implodiu. De sorte que agora, com a CPI da Covid-19, aguardemos as cenas dos próximos capítulos que poderão resgatar o país do abismo do qual nos aproximamos perigosamente.
Referência:
(1) Na lição esclarecedora de Uadi Lammêgo Bulos (2015) as CPI’s: “Surgiram na Inglaterra, no seio da Câmara dos Comuns. No Brasil, foram consagradas pelo texto de 1934, artigo 36, mantendo-se com o advento da Carta de 1988, artigo 58, §3º”. Alguns historiadores apontam que a CPI tem origem na Inglaterra, durante o reinado de Eduardo II, no fim do século XIV, porém outros historiadores afirmam que foram criadas as CPIs pela primeira vez na Câmara dos Comuns no século XVIII e, mais modernamente, se descobriu que há milhares de anos, tais reuniões já eram praticadas por monges budistas bem no sopé das montanhas quando sentavam-se em círculo para meditar, em todos essas origens, se percebem que nasceram do mesmo clamor do povo que exigia uma investigação para apurar e punir os causadores do mal estar geral.
(*) Gisele Leite – Mestre e Doutora em Direito, é professora universitária.
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