Motim a bordo

(*) Carlos Brickmann

A história do navio HMS Bounty, da Marinha Britânica, é fantástica: no final do século 18, o famoso capitão William Bligh foi escalado para buscar frutas exóticas do outro lado do mundo. Escolheu seus subcomandantes, montou a tripulação, definiu o mapa da viagem. Mas a missão que tinha tudo para dar certo não levara em conta a barbárie do capitão. A qualquer falha, a pena mínima era de vinte chibatadas. O clima a bordo foi piorando e, um dia, Bligh foi preso pelos subcomandantes que tinha escolhido; e abandonado, com alguns de seus mais notórios assessores, a bordo de um pequeno barco em alto mar. A tripulação e os novos comandantes decidiram estabelecer-se em ilhas de bom clima, moradores obedientes e vida tranquila. Mas, ferozes demais, os sucessores de Bligh foram assassinados pelo povo bonzinho.

Bligh conseguiu voltar à Inglaterra, onde foi submetido a Corte Marcial e inocentado. E os amotinados? Não se constrói uma força armada como a Marinha britânica aceitando a indisciplina. O Almirantado enviou o Pandora para caçar os indisciplinados. Catorze foram capturados, quatro morreram na viagem; a Corte Marcial (que em potências militares é coisa séria) absolveu quatro, perdoou três e enforcou três. O pequeno grupo que tinha se instalado nas ilhas Pitcairn acabou localizado, mas só um militar rebelado ainda vivia. Este foi perdoado, pela idade.

Livros, eles não leem. Nem filmes ensinam como as coisas acontecem?

Olhando a vida

Há mais de 60 anos, uma grande marcha se realizava em São Paulo – a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Discutia-se na redação quantas pessoas havia na rua. Os palpites variavam de mais ou menos ninguém – só haveria ali patrões milionários e seus empregados – a milhões, que aliás não caberiam no espaço. A resposta era simples: não importava quantas pessoas ali houvesse, mas havia muita gente. Era, pois, uma manifestação de peso. E deu certo: o presidente João Goulart, com ministros militares, partidos em massa, grupos de milicianos armados, um chefe da Casa Militar, militares em tudo quanto era empresa estatal (“os marechais do povo”, chamavam-se na época), medalhas e condecorações para manter uma boa metalúrgica em plena atividade.

Caiu todo o castelo de cartas quando o general Mourão pôs sua tropa em marcha. Os melhores amigos do presidente, como os melhores amigos do comandante Bligh, colaboraram para depô-lo.

Era só observar a situação com frieza: quem brincava de princesa não viu que era fantasia.

Pesquisas, pesquisas

Neste fim de semana o que não falta é pesquisa, todas indicando que o governo perdeu sustentação. Os principais institutos de pesquisas do país indicam que o presidente superou mais uma vez os níveis de rejeição e é hoje rejeitado por mais da metade do eleitorado. Pode estar errado? Pode. Mas há uma convergência rara no mundo das pesquisas. E, por favor, antes que comece o mimimi sobre Bolsonaro ter ganho quando se apostava que nenhum adversário perderia para ele no segundo turno, Truman venceu as eleições de 1948 nos EUA contra as previsões, e os empresários do mundo inteiro continuam gastando dinheiro em pesquisas para orientar suas vendas.

Em 2018 tinha-se como certo que Bolsonaro era honestíssimo e lutava contra uma máquina corrupta. Hoje, 63% de quem tomou conhecimento das notícias da CPI da Covid acredita que há corrupção na compra de vacinas, enquanto 26% as consideram “provavelmente falsas”.

E por que tanta gente leva a sério as denúncias? Por que o presidente se esquiva de respondê-las?

Coisas estranhas

Quem acompanha a política sabe que o Centrão não se vende: aluga seus votos caso a caso. Pois já tem gente do Centrão pulando fora do Governo. O presidente nacional do PSD, Gilberto Kassab, político de rara habilidade, vem batendo no Governo há semanas. E um indicado seu, para o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, acaba de ser demitido pelo Governo.

Tem mais: a ex-mulher do general Pazuello se oferece para depor à CPI contra ele, a ex-cunhada do próprio Jair Bolsonaro diz que ele era chegado a uma rachadinha e que chegou a demitir o irmão de sua então esposa porque devolvia menos que o combinado. Luiz Miranda, que denunciou a estranha compra da vacina indiana contra a Covid, é deputado bolsonarista de raiz. Quando soube das coisas estranhas não abriu a boca: foi ao presidente. E só se moveu quando viu que o presidente não fez nada. O general Pazuello, da ativa, participou de atividade partidária (e o vice, general Mourão, achou estranho). Não sofreu punição, OK. Mas por que colocar o caso em segredo por cem anos? Que será tão difícil de explicar para precisar desse tempo?

A posição faz o ladrão

E, bem agora que a CNBB condena as manobras antidemocráticas, que tal ver de onde surgiu a palavra “ladrão”? Está na Oração do Bom Ladrão, do padre Vieira. Muito instrutivo. Em https://go.shr.lc/3e2PpRD

(*) Carlos Brickmann é jornalista e consultor de comunicação. Diretor da Brickmann & Associados, foi colunista, editor-chefe e editor responsável da Folha da Tarde; diretor de telejornalismo da Rede Bandeirantes; repórter especial, editor de Economia, editor de Internacional da Folha de S. Paulo; secretário de Redação e editor da Revista Visão; repórter especial, editor de Internacional, de Política e de Nacional do Jornal da Tarde.

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