(*) Ucho Haddad
Jornalismo independente é o que sempre defendi e defendendo. O jornalismo independente tem o compromisso inegociável de informar com imparcialidade, sem tutela, com base na verdade dos fatos e com responsabilidade, levando o leitor à reflexão. Só assim consigo estar jornalista. Tal condição impede qualquer tipo de financiamento que atenda a interesses terceiros.
Também acredito que a necessidade não tem limites, ou seja, o ser humano, a depender da situação, é capaz de tudo, ou quase tudo, para garantir a própria sobrevivência e manter suas crenças e convicções. O que não justifica ações violentas, cada vez mais presentes no cenário internacional.
Fomos surpreendidos neste sábado, 7 de outubro, com um ataque histórico do Hamas a Israel, alvo de pelo menos cinco mil foguetes disparados a partir da Faixa de Gaza, sem contar os integrantes do grupo da resistência palestina que adentraram o território israelense. O serviço de inteligência de Israel falhou, a ousadia do Hamas falou mais alto, fez estragos consideráveis. O balanço do episódio é trágico, mas precisa ser dissecado.
As notícias veiculadas por órgãos de imprensa limitaram-se a analisar o grave incidente de maneira isolada, colocando o Estado de Israel como vítima. Noticiosos preferiram consultar apenas especialistas em questões israelenses, como se o povo palestino não existisse. A pasteurização da narrativa em prol dos donos do capital que financia boa parte da imprensa global causa engulhos. Quem conhece os bastidores do jornalismo sabe muito bem do que ora afirmo.
Não estou a defender um ou outro lado, mas ressalto que no bom jornalismo a notícia é parte do todo. Em suma, é preciso compreender a tragédia social que há muito impera na Faixa de Gaza – território de 360 km² e população de pouco mais de 2 milhões de pessoas – para emitir opiniões sobre as investidas dos palestinos contra Israel.
Muitos veículos de imprensa – talvez a grande maioria – insistem em tratar o Hamas como grupo terrorista. Ao fazer isso, a imprensa simplesmente ignora a causa palestina, que tem como principal bandeira a reivindicação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza como território palestino, até hoje não reconhecido oficialmente.
Sou radicalmente contra a violência – física, verbal, bélica e outras tantas –, mas é ultrajante a miopia jornalística diante do que acontece em Gaza. Não se pode fechar os olhos para uma realidade que por conveniência torpe é deixada à margem. Essa postura, fruto da manipulação criminosa da informação, referenda a segregação imposta por Israel, que a partir desse cenário de conflito consegue legitimar a contraofensiva.
A Faixa de Gaza é uma porção de terra que ao Sul encontra o Egito, há muito dedicando sabujice a Tel Aviv. A Leste e ao Norte, faz fronteira com Israel; a Oeste, com o Mar Mediterrâneo. Para piorar o cenário, Israel, sob o pretexto de garantir segurança aos seus cidadãos, ergueu um vergonhoso muro que isolou de vez os habitantes de Gaza.
Quem lá vive enfrenta escassez de alimentos, medicamentos e outros itens de primeira necessidade, pois Israel cria empecilhos dos mais diversos para inviabilizar a chegada desses produtos aos palestinos. A população de Gaza depende em larga escala de ajuda humanitária, sempre dificultada. Faz-se necessário ter clareza e disposição para enxergar a diferença entre o que é noticiado pela imprensa, no estilo “para inglês ver”, e a dura realidade enfrentada pelos palestinos de Gaza.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Inglaterra, corretamente sensibilizada com o Holocausto, propôs a divisão da Palestina em duas partes: uma pertencente aos árabes, a outra, aos judeus. Em 1947, a Organização das Nações Unidas (ONU) aceitou a proposta inglesa e dividiu a Palestina. No ano seguinte, 1948, foi criado o Estado de Israel, sendo Jerusalém a capital. Na verdade, Jerusalém deveria ser território neutro, uma vez que abriga importantes símbolos do cristianismo, do islamismo e do judaísmo.
Os palestinos que viviam em Jerusalém foram deslocados à força para a periferia da cidade, ocupando a parte oriental da região. A proposta dos ingleses e a ONU ignoraram eventuais e previsíveis divergências religiosas, políticas e econômicas que a divisão da Palestina causaria. Cada vez mais esvaziada em termos de poder, a ONU assiste a tudo prostrada.
Desde a criação do Estado de Israel até hoje, a região de Jerusalém é palco de intermináveis conflitos culturais, religiosos e identitários, desencadeando massacres, guerras e ondas de intolerância contra os palestinos.
O não reconhecimento oficial do Estado da Palestina, que continua sendo “de jure”, fez com que o Fatah, organização político-militar criada por Yasser Arafat e outros membros da diáspora palestina, perdesse força política, abrindo caminho para o Hamas, que vendeu aos palestinos a ideia de que tinha condições de levar adiante a causa daquele povo. Caso o Estado da Palestina tivesse sido criado e reconhecido oficialmente, por certo o Hamas jamais teria surgido na cena local.
O pano de fundo do ataque do Hamas passa obrigatoriamente pela tentativa de normalização das relações entre os países árabes com Israel. A Arábia Saudita, que com incursões bilionárias em múltiplas direções tenta camuflar a ditadura comandada pelo príncipe-herdeiro Mohammad bin Salman, estreitou laços com Israel, ameaçando sobremaneira a causa palestina, que não mais é objeto de interesse da Liga Árabe.
O Irã, que não integra a Liga, faz um jogo duplo nesse complexo tabuleiro geopolítico, onde interesses dos mais diversos atropelam a lógica e o bom-senso. Enquanto usa o Hamas para mandar recado aos que tentam normalizar as relações dos países da região com Israel, o governo dos aiatolás não reage diretamente às ações de Tel Aviv.
A causa palestina é justa, como citei anteriormente, mas continuo defendendo o diálogo e o imediato reconhecimento do Estado da Palestina. A questão é que Israel só se senta à mesa de negociação caso suas vontades e imposições prevaleçam, ou seja, os palestinos têm de aceitar passivamente que perderam suas terras e se contentar com o que restou, vivendo à sombra de uma tragédia humanitária que acontece a todo instante, a cada segundo, há quase oito décadas.
A mídia teima em transformar Israel, unilateralmente, em vítima, algo que já destaquei e insisto. Há dias, vários sinais de eventual reação por parte dos palestinos marcaram o cotidiano local. Casos de violência contra palestinos muçulmanos e cristãos foram registrados ao longo da semana. Judeus ortodoxos cuspiram em cristãos que caminhavam pela Via Dolorosa. Como destacou o professor Salem Nasser em excelente artigo (Pode o olho lutar contra a agulha?), ocorreram “ataques à mesquita de Al Aqsa, contra mulheres palestinas e contra palestinos que se encontram nas prisões israelenses”. O governo ultradireitista de Israel preferiu ignorar os fatos.
Viver é um ato de ousadia, que exige otimismo e resiliência, não sem antes ser um verbo que só se conjuga na primeira pessoa do plural. Ou nós ou nada feito. É preciso olhar para frente sempre, mas o convívio pacífico depende acima de tudo de olharmos para os lados e principalmente no retrovisor, sem medo de mirar a verdade pretérita. Isso a imprensa internacional se recusa a fazer, enquanto dissemina informações distorcidas a respeito do conflito que vem de longe e não tem data para terminar.
Como mencionei, a notícia é parte de um todo. Em outras palavras, o bom jornalismo jamais deixa o contexto à beira do caminho, conduta condenável que agrada a uma minoria poderosa e engana bilhões de incautos ao redor do planeta, que sequer percebem que a violência trafega em via de mão dupla. Que o entendimento e a paz falem mais alto!
Aos jornalistas sugiro urgente exame de consciência, pois, como sempre digo e não canso de repetir, sou o melhor produto dos meus próprios erros. Para tanto é preciso largas doses de coragem e humildade.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.
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