O conflito Hamas-Israel, a sabujice da imprensa e a teoria de Umberto Eco

(*) Ucho Haddad

Tenho opiniões e posições fortes, resultado de ponderação, coerência e acima de tudo respeito à verdade dos fatos. Não sou do tipo que fica em cima do muro ou aceita ser tangido como gado a caminho do abate. Ter posições que contrariam a avalanche de mesmice que tomou conta do planeta é um ato de coragem, uma decisão arriscada. Como tal, não fujo da raia neste artigo. Escrevo com base em décadas de estudo e análises parcimoniosas sobre os fatos, priorizando os respectivos contextos. Tenho ciência do risco de ser criticado mais uma vez, agora a partir deste texto.

Em 2015, durante cerimônia na Universidade de Torino, quando foi agraciado com o título de doutor honoris causa, o escritor e filósofo italiano Umberto Eco deu uma de suas mais polêmicas e certeiras declarações: “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Em suma, a rede mundial de computadores e seus muitos penduricalhos tecnológicos são terreno fértil para a proliferação de imbecis.

Confesso não saber o que é mais repugnante: jornalista irresponsável que tenta “lacrar” na internet ou ignorante metido a gênio que nas redes sociais compartilha inverdades o tempo todo. Sem contar os órfãos de opinião que agem como o papagaio tagarela do quintal da casa da vovó, repetindo sem parar o que aprendeu com algum desavisado.

São nauseantes as notícias e postagens sobre o conflito envolvendo o Hamas e Israel. De forma deliberada, sem qualquer dose de vergonha, avança um movimento de construção de narrativa para fazer de Israel a vítima maior. Tudo com a conivência ignóbil de boa parte da imprensa global, começando pela porção brasileira.

O que tenho visto, lido e ouvido sobre o conflito é fruto de análise mambembe, tendenciosa e pontual de um cenário muito mais complexo e longevo, mas por interesse de alguns tem ocorrido deslavada pasteurização da mentira.

Alguns jornalistas, vedetes nas redes sociais, decidiram condenar unilateralmente o Hamas porque rende engajamentos. Não demorou muito e se viram obrigados a rever o posicionamento depois que parte da internet passou a se inteirar da realidade dos fatos e a cobrar postura mais próxima da verdade. Os incautos sequer perceberam a manobra repentina, mas os ranzinzas com o noticiário logo detectaram a mudança. Adotaram o modelo um pé em cada canoa. Como disse o escritor português Manuel Maria Barbosa du Bocage, “pior a emenda que o soneto”.

Esse detalhe pouco importa em meio ao turbilhão de informações distorcidas que favorecem um lado e demonizam o outro. Condeno de forma veemente a violência em qualquer segmento, algo que já deixei claro em meus textos. Condeno também políticas de ocupação, principalmente quando acontecem sob a desculpa esfarrapada da autodefesa. O russo Vladimir Putin, um patife conhecido, usa o argumento da autodefesa para justificar a destruição da Ucrânia, de quem tomou a Crimeia, em 2014, como punguista profissional.

Quem tiver parcas doses de paciência e recorrer a livros de História perceberá que no conflito entre palestinos de Gaza e israelenses prevalece a célebre terceira lei de Newton: “A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade”. Os integrantes do Hamas só reagiram de maneira inesperada porque há muito enfrentam as barbáries cometidas por Israel.

Oportunistas estão a afirmar que o Hamas não representa o povo palestino. É verdade que o Hamas não representa oficialmente os palestinos, mas a Faixa de Gaza é parte da Palestina. E os que lá vivem, sob o controle de radicais, são palestinos. Contudo, o Hamas é legítimo representante da causa dos palestinos.

No contraponto, gostem ou não, a Autoridade Nacional Palestina, liderada por Mahmoud Abbas, não cuida dos verdadeiros interesses dos palestinos, que sonham com a definição e a oficialização de um Estado.

A Autoridade Palestina é um órgão provisório de autogoverno estabelecido em 1994, após o Acordo Gaza-Jericó, para governar a Faixa de Gaza e as Áreas A e B da Cisjordânia, como resultado dos Acordos de Oslo de 1993. Abbas é acusado de corrupção e subserviência ao governo de Tel Aviv. Além disso, ele não reage com firmeza diante do descumprimento de acordos por parte de Israel. Esse comportamento desagrada aos palestinos de Gaza e aos radicais do Hamas, que defendem o fim do Estado de Israel. Sou contra o fim do Estado de Israel, algo que jamais ocorrerá, mas defendo a criação do Estado da Palestina.

Por sua vez, Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, também é acusado de corrupção e enfrenta momento político delicado, fruto da tentativa antidemocrática de engessar o Supremo Tribunal israelense. O modus operandi de Netanyahu está calcado no “bate e arrebenta”, algo viável apenas porque Israel conta o apoio financeiro e militar dos Estados Unidos, que mesmo sob um governo dito democrático apoiam as barbáries cometidas pelos israelenses.

Nessa disputa que já dura quase oito décadas, os agressores são sempre os palestinos, ao passo que os israelenses insistem em vestir a cangalha da vitimização. A grande imprensa global não revela que, de acordo com dados da Organização das Nações Unidas (ONU), desde 2008 até a deflagração da Operação Tempestade al-Aqsa, em 7 de outubro, os israelenses mataram 6.300 palestinos, a maioria civis, e feriram outros 150 mil. Por outro lado, no mesmo período, os palestinos mataram 308 israelenses (131 civis) e feriram 6.307.

Israel, a falsa vítima, atira intencionalmente em civis, mantém crianças palestinas em confinamento solitário durante longos períodos, tortura prisioneiros detidos sem acusações formais, dá proteção a colonos israelenses que saqueiam povoados palestinos e destroem casas, raciona o fornecimento de água, em níveis abaixo das necessidades diárias mínimas estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde. Afinal, quem é o invasor e quem é a vítima? Israel tem o direito de se defender, mas esse direito não vale para os palestinos?

Impingir o rótulo de organização terrorista ao Hamas interessa a Israel, pois essa cortina de fumaça serve para esconder o terrorismo cotidiano cometido por israelenses contra os palestinos, em especial os da Faixa de Gaza. O cenário de “faz de conta”, que muitos acreditam ser expressão da verdade suprema, conta com o apoio criminoso dos Estados Unidos – que coleciona muitos adversários e múltiplos interesses no Oriente Médio – e de muitos países do Ocidente.

Netanyahu, que balançava no cargo, conseguiu às pressas formar um governo provisório, com o apoio da oposição, apenas e tão somente porque Israel entrou na mira do Hamas. São grandes e concretas as chances de Benjamin Netanyahu, conhecido como “Bibi”, ser apeado do posto de primeiro-ministro depois do fim do conflito com o Hamas. Vingança não pode ser política de Estado, algo que “Bibi” faz de forma escancarada.

Em contato com líderes ocidentais, autoridades israelenses tentam demonizar o Hamas usando imagens do conflito. Por razões óbvias são exibidas apenas as que retratam a tragédia ocorrida em território israelense. O que aconteceu e ainda acontece na Faixa de Gaza não são mostradas. Ademais, algumas fotos exibidas por autoridades israelenses foram covardemente manipuladas.

A exemplo do que ocorreu na Ucrânia, durante longas semanas a invasão russa recheou o noticiário. Com o passar do tempo, a guerra na Ucrânia foi perdendo espaço no noticiário porque a opinião pública não tem mais interesse no conflito, como se os ucranianos simplesmente não inexistissem. Em artigo anterior afirmei que o facínora Vladimir Putin certamente aproveitaria o conflito entre o Hamas e Israel para atropelar de vez os ucranianos, já que a atenção internacional está voltada para o Oriente Médio. Isso já acontece.

No início de 2002, afirmei que não demoraria muito para os Estados Unidos invadirem o Iraque. À época, fui bombardeado por críticas das mais diversas, mas minha previsão se confirmou na esteira da psicopatia de Dick Cheney, então vice de George Bush, o filho. A hipocrisia do ser humano é tamanha, a ponto de ninguém se preocupar com a atual situação vivida pelos iraquianos. Não estou defendendo Saddam Hussein, que governava o país com mão de ferro, mas a sua saída da cena política local abriu caminho para o surgimento do grupo terrorista Estado Islâmico. Saddam, apesar do seu jeito truculento de ser, sabia como conter os radicais. Aos interessados em conhecer a essência torpe de Cheney, assistam ao filme “Vice” (2018), com interpretação magistral de Christian Bale no papel do facínora que arquitetou a invasão ao Iraque. (disponível na plataforma Prime Vídeo)

Aliás, não se fala mais sobre a guerra civil que devastou a Síria. Embalados pelo movimento conhecido com “Primavera Árabe”, os sírios decidiram protestar contra o governo do ditador Bashar al-Assad, que reagiu de forma violenta às manifestações populares. Foi o bastante para os opositores de Assad se armarem para a guerra, prestes a completar 13 anos. No rastro da guerra, o Estado Islâmico migrou para a Síria, com a anuência de Bashar al-Assad, que acreditou na possibilidade de o grupo eliminar seus opositores. Os Estados Unidos interferiram na guerra da Síria para combater os radicais do Estado Islâmico. Rússia e Turquia continuam atuando indiretamente na guerra civil síria.

Mais pobre nação da Península Arábica, o Yemen está em guerra civil há oito anos. Apoiados pelo Irã, os rebeldes houthis lutam contra o governo local, que por sua vez é apoiado por uma coalizão militar liderada pela Arábia Saudita. A tragédia social avançou sobremaneira no Yemen, mas Riad e Teerã preferem ignorar o caos que patrocinam.

Em agosto de 2021, após 20 anos de ocupação, os Estados Unidos retiraram do Afeganistão os últimos militares americanos que estavam no país destruído pela guerra. Em outubro de 2001, os EUA invadiram o Afeganistão para se vingar dos ataques terroristas de 11 de setembro, orquestrados pela grupo Al Qaeda. O objetivo principal da invasão americana era caçar Osama bin Laden e punir o Talibã por fornecer abrigo aos líderes do grupo. Com a saída dos militares americanos, o Talibã voltou ao poder, impondo à população, com a conhecida truculência, a “sharia”, conjunto de leis ultrarradicais derivadas do Islã.

Após a deposição e morte de Muammar al-Ghaddafi, em outubro de 2011, a Líbia entrou em colapso por conta de reivindicações políticas e sociais. Nação formada por inúmeras tribos, a Líbia se tornou palco de uma guerra que durou até 2020, destruindo o país de forma impressionante.

Acéfala em termos de governo e com grupos armados guerreando entre si durante anos, a Líbia viu a infraestrutura local arruinar. As fortes chuvas causadas pela tempestade Daniel, combinadas com o rompimento de duas barragens, causaram inundações devastadoras no Leste da Líbia. Mais de 11 mil pessoas morreram e outras 10 mil continuam desaparecidas.

Destaco, novamente, que jamais defendi al-Ghaddafi, pelo contrário, mas é preciso lembrar que os líbios estão mergulhados em cenário de tragédia máxima e merecem a atenção da comunidade internacional, algo que deixou de acontecer dias após as enchentes de setembro passado.

Os conflitos listados acima servem para mostrar que a imprensa global, inclusa a brasileira, e a opinião pública precisam de uma causa nova no cardápio do cotidiano. Só dessa maneira conseguem existir. Dou como exemplo, fora do campo bélico, o “Black Lives Matter”, movimento ativista internacional que também desembarcou no Brasil, onde teve o nome traduzido para “Vidas Negras Importam”. Por aqui, negros, pretos e pardos continuam sendo devorados pelo racismo estrutural e sistêmico, mas parece que o assunto já não desperta interesse.

Quem se importa com o drama enfrentado pelos iraquianos, sírios, líbios, afegãos, ucranianos, iemenitas e negros de toda parte? Uma ínfima minoria, para não usar a palavra ninguém. A guerra da vez é a travada entre israelenses e os integrantes do Hamas. Para a imprensa pouco importa se o conflito está sendo noticiado à exaustão com a ajuda de uma saraivada de inverdades. O importante é obedecer rigorosamente às ordens de quem financia a notícia e ponto final.

Sendo assim, o mínimo que posso fazer é concordar com o genial Umberto Eco. Para o infortúnio da humanidade, a internet transformou “o idiota da aldeia em portador da verdade”. Aliás, o que não falta na imprensa é essa figura descrita por Eco, o idiota lacrador, sempre pegando carona na boleia da mentira.

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

As informações e opiniões contidas no texto são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo obrigatoriamente o pensamento e a linha editorial deste site de notícias.


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