(*) Regina Helena de Paiva Ramos
Frequentei o litoral norte de São Paulo durante mais de 70 anos. Primeiro em Caraguatatuba, de onde fiz excursões a Ubatuba, São Sebastião e Ilhabela. Depois Ubatuba, em todos os rincões daquele município, inclusive naqueles existentes antes que a Rio-Santos existisse e só alcançados por barcos. Naquela ocasião, anos 50 e 60, uma senhora por nome Virgínia Lefèvre fazia um trabalho social em praias isoladas digno de aplausos. Coisa simples: construía escolas e as entregava à prefeitura de Ubatuba. Mobiliava as escolas e fornecia material escolar. Doava formicida para que as formigas não acabassem com as roças caiçaras. Distribuía remédios, principalmente contra vermes, que acabavam com a criançada isolada em locais quase inacessíveis. Levava casais ao cartório da cidade para regularizar uniões e registrar filhos, para que tivessem identidade e documentos e pudessem registrar suas terras, já muito na mira de grileiros.
Acompanhei d. Virgínia como repórter nas praias da Almada e do Engenho, em Picinguaba, na Cassandoca, na praia do Felix e em Ubatumirim e também no Sertão de Ubatumirim, onde se chegava depois de duas horas de barco e mais hora e meia a pé subindo a serra em meio à mata. Dormi no chão na escolinha da Almada e repeti a façanha na escola do Sertão de Ubatumirim. E dormi feliz, só os ossos doíam no dia seguinte, estava fazendo matéria importante e vibrava com o que ia encontrando. Chegava a São Paulo depois dessas viagens esculhambada e feliz e o prazer era transformar as informações recolhidas em páginas de jornal. Era a minha profissão, que amei desde o primeiro dia, na primeira reportagem.
Foi no Sertão de Ubatumirim, à beira de um rio límpido e encascalhado que tomei nota pela primeira vez de termos caiçaras. Chamou minha atenção os lusitanismos empregados pelos moradores de lá e o apelo ao diminutivo com que se referiam aos filhos: “essezinho ficou ruim com uma gripe”, “essazinha pegou amarelão e está assimzinha, mazinha”.
Já na década de 70 fiz com um colega matéria para o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, viajando pelos lugares por onde passaria a Rio-Santos. Andamos de carro, de ônibus, de barco e a pé, cortando o mato à nossa frente. Foi uma verdadeira epopeia, matéria que nos consumiu vários finais de semana sendo sugados por borrachudos, fugindo de cobras, suando em bicas pelas trilhas dentro da mata, nos impactando de horror quando topamos com um cemitério dentro da floresta, sem muros, os bichos do mato vinham desenterrar os cadáveres durante a noite. D. Virgínia Lefèvre, a mesma senhora citada no começo deste artigo tinha doado tijolos para fazer o muro, mas os mesmos foram roubados… E lá continuava o cemitério sem defesa! Cruzamos com um enterro, o defunto vinha numa rede, transportado de uma ilha, havia que atravessar um rio e a rede foi colocada numa canoa, lembrei de Gil Vicente (“Ó da barra! O que tu queres? Quereis me passar além! Quem és tu? Não sou Ninguém”) Acompanhamos aquele “ninguém” até sua última morada e ficamos pensando na noite que viria e nos bichos da floresta que também viriam.
Na década de 70 em diante parei de correr o litoral paulista e fiz meu pouso mais perto de São Paulo, em região por onde também passaria a Rio-Santos. Mas ela nem se avistava, ainda, no horizonte.
Foi um longo pouso em Juquehy, levou quase meio século e tive tempo para olhar o mar, cultivar orquídeas, tomar cerveja, comer peixadas, lutar para que o lugar continuasse lindo e calmo (não ficou!), anotar a linguagem caiçara e, um dia, como escritora dublê de jornalista escrever sobre a região. Primeiro escrevi muito em jornais locais e não locais clamando por respeito ás leis ambientais, filiei-me a uma sociedade de amigos – acredito na força da sociedade civil organizada – ao mesmo tempo que pesquisava a cultura local e anotava os termos caiçaras.
O falar caiçara – que eu observara atentamente no sertão do Ubatumirim é um falar único no país. Usa termos do português antigo, inventa palavras e tem um ritmo veloz e por vezes “cantado”. Troca o “v” pelo “b” e isso me dá saudades do Porto, é lá que o povo fala assim. Brincando, gostava de imitar principalmente Vadinho, um caiçara raiz que fora motorista da ambulância e com quem eu gostava de conversar: “Bede, Vadinho, que o tempo hoje está fortunoso e o bento que vem do mar bai lebar o calorão embora, estou certa? E ele respondia numa velocidade quase impossível de entender, mas sempre sobejava algo para anotar no meu caderninho que foi virando um cadernão. Mulher “desbandeirada” é mulher sem juízo. “Fortunoso” é coisa boa, feliz. “Ir na ceva” é ir ver se tem peixe na rede colocada no mar. Mar “revoltoso” é mar bravo. “Barrear” casa é encher de barro o arcabouço da casa que está sendo erguida. “Canoa de voga” é a canoa usada antigamente como transporte para ir a Santos, com vários remadores. “Cobardia” é covardia. “Catiça” é mau olhado. “Desbergonha”, “pulícia”, “rala-bucho”, “arrelá”, “guampos”, “descalabro”, “tumbulos”, “livrança”, “mariscar”, “fastio”, “consertar peixe” e ao fim e ao cabo eu tinha tanta coisa anotada que daria para escrever uma espécie de dicionário caiçara. Em vez disso escrevi um romance. Está sendo lançado este mês pelo Grupo Almedina – editora portuguesa que abriu filial no Brasil.
“Vento Endiabrado” conta histórias passadas numa praia fictícia, mas uma praia fictícia que engloba as praias que conheci andando de barco ou a pé, de carro ou de ônibus, aqui e ali, antes que a Rio-Santos apontasse no mapa.
Um amigo me perguntou se tinha sido fácil escrever “Vento Endiabrado”. Respondia que tinha sido fácil, sim.
– Levou só 70 anos.
(*) Regina Helena Paiva Ramos é jornalista e escritora.
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