(*) Ucho Haddad
Após décadas de jornalismo, a maior parte do tempo dedicado à política nacional e seus recorrentes escândalos, decidi que havia chegado o momento de aposentar a pena para desfrutar com paz e tranquilidade os anos que me restam.
Tomar tal decisão assistindo à contínua degradação do Brasil não é tarefa fácil. Por essa razão ainda não “pendurei as chuteiras”. Vez por outra escrevo, agora com mais força e ânimo, depois de seguidos problemas de saúde. Sinto que ainda tenho obrigações com o País e principalmente com algumas pessoas extraordinárias, que me são queridas. Por causa dessas pessoas especiais, raríssimas, arrisco dizer, continuo acreditando que um dia o Brasil dará certo.
Esse texto não tem o propósito de rememorar minha carreira, mas, sim, homenagear uma pessoa por quem, de olhos fechados, coloco a mão no fogo. Na longa estrada do jornalismo, tive o privilégio de conhecer dois servidores públicos de honestidade exemplar, incontestável, compromissados com o Brasil. Hoje, com atraso justificável, escrevo para exaltar a retidão de Willamara Leila de Almeida.
Volto no tempo para detalhar como conheci Willamara e sua família. Certo dia, creio que em 2002 ou 2003, recebo um telefonema de Palmas, capital do Tocantins. Do outro lado da linha, uma pessoa extremamente gentil se apresentou como secretária da desembargadora Willamara Leila de Almeida. Imediatamente pensei no que poderia ter feito de errado para uma desembargadora querer falar comigo. Naquele momento a sorte estava lançada.
Em seguida, Willamara – às vezes a chamo pelo primeiro nome, às vezes de Leila – se apresenta, como se fosse necessário, e diz que tomou conhecimento do meu trabalho como jornalista e que integrantes do Tribunal de Justiça do Tocantins gostariam de estar comigo. Agradeci enormemente pela deferência, mas respondi que não sabia – como ainda não sei – lidar com essas situações. Ela insistiu. Sem convencê-la do contrário, aceitei o convite com ressalvas. Pedi para que nada de extraordinário fosse feito em função da minha presença em Palmas. Willamara deu sinais de ter concordado.
Parto de São Paulo para Palmas, onde fui recebido no aeroporto por um homem solícito, João, marido de Willamara. Rumamos para sua residência. Quando lá chegamos, logo perguntei pela desembargadora, pois, além de conhecê-la, queria presenteá-la com um livro. João, talvez cumprindo um roteiro combinado com Willamara, disse-me: “Vamos passar lá para trás”. Lembro-me da cena e da fala de João até hoje. Ao chegar à parte de trás da residência, deparo-me com uma festa.
Assim conheci Willamara, João e a família. A festa avançou pela noite. No dia seguinte, fui convidado para participar de sessão no plenário do Tribunal. Em dado momento, a desembargadora pede a palavra ao presidente da Corte e me dedica emocionante homenagem. A partir daquele momento, construímos uma amizade verdadeira, que como tal escapou das armadilhas dos calhordas.
Dona de retidão inabalável e de reconhecida competência como magistrada, ela chegou à presidência do Tribunal de Justiça do Tocantins. Desde então, pessoas começaram a conspirar contra a amiga Willamara Leila.
Em abril passado, Leila me presenteou com um livro – “Biografia Interrompida” – que narra a infância difícil, seu interesse pela Justiça desde pequena, a graduação em Direito, o escritório de advocacia, o concurso para magistrada e a investida sórdida e covarde de pessoas que se incomodaram veladamente com sua trajetória e principalmente com sua atuação à frente do Tribunal. Sua vocação para a Justiça é percebida em trecho do livro que trata da menina que, sem o conhecimento dos pais, foi espreitar um julgamento que ocorria na cidade. Quem lê consegue enxergar o brilho nos olhos da garota talhada para a Justiça.
O pecado (sic) cometido por Leila foi cuidar do Judiciário tocantinense com dedicação contínua e extremo zelo. Apostou na democratização da Justiça, inaugurando fóruns nos mais distantes rincões do caçula dos estados brasileiros. Esse trabalho, absolutamente correto e necessário, feriu os interesses de poderosos, que, inspirados nos corredores das catacumbas mafiosas, reagiram de forma inescrupulosa.
“Biografia Interrompida” mostra com detalhes, que às vezes causam arrepios, como Willamara e a família acordaram com policiais e representantes da Justiça invadindo sua residência, empunhando mandados que, eivados de inverdades, exalavam o odor fétido da essência deletéria de quem não tem compromisso com a verdade. Foram horas de terror, sem que soubesse qual era a acusação que lhe faziam. A gestapo que emergiu das furnas da Justiça revirou sua residência, sem encontrar uma nesga de prova material que pudesse respaldar as acusações contidas no mandado de busca e apreensão. Nada, absolutamente nada, nem mesmo um anoréxico indício de transgressão. A ordem do dia era assassinar uma reputação ilibada.
Resiliente e forte, afinal a consciência limpa e tranquila não se verga diante do banditismo que balança togas e assombra gabinetes, e com fé permanente, Willamara avança de maneira incansável na cruzada para provar sua inocência, que, atesto e assino, resiste a qualquer questionamento.
Willamara veio ao mundo com a essência de Têmis, a deusa da Justiça, defensora da lei, da ordem e principalmente dos oprimidos. Para os hereges que se travestem de democratas, essa conduta incomoda sobremaneira. Willamara, a desembargadora, incomodou muitos poderosos, sem ao menos imaginar que isso pudesse estar ocorrendo. Em “Biografia Interrompida”, Leila, a amiga que a vida me presenteou, relata eventos oficiais dos quais participou, percebendo tardiamente a existência de um movimento canhestro nas coxias do Judiciário. Esses eventos ocorreram pouco antes do epílogo criminoso que lhe ceifou a missão de atuar em nome da Justiça e em favor dos oprimidos.
Na esteira do direito à ampla defesa e ao contraditório, garantido com todas as letras pela Constituição, o caso de Willamara aterrissou no sisudo Conselho Nacional de Justiça, em Brasília. Com a justiça abandonada cambaleante à beira do caminho, o CNJ, como se fosse um tribunal hitleriano, decidiu pela aposentadoria compulsória. Tudo à sombra de pompa, circunstância e falso moralismo nauseante. Há quem diga que aposentadoria compulsória é um prêmio – em casos de magistrados corruptos, como os que pululam Brasil afora, certamente é –, mas no caso em pauta é desmedida bizarrice, atentado ao bom-senso, inequívoco sequestro da dignidade humana, afronta à própria Justiça, muitas vezes injusta.
No recente período em que me vi obrigado a cuidar da saúde, dediquei parte do tempo para a leitura. Devorei “Biografia Interrompida” de uma só vez, rompendo a madrugada. Em texto simples, direto e sem firulas e rapapés, o relato de Willamara é assustador para qualquer um. Quem não conhece o modus operandi que impera nos bastidores do poder, o livro é uma aula magna. Mostra de maneira descompromissada, mas plena e verdadeira, como a covardia rege uma orquestra frequentada por figuras abjetas, desprezíveis, causadoras de engulhos.
Inquieto com o conteúdo de “Biografia Interrompida”, li novamente o livro da amiga Leila, que não só para mim, mas para muitos, será sempre desembargadora. As longas décadas de jornalismo político e investigativo permitiram conhecer os subterrâneos do poder. Na segunda leitura, mais demorada, me vi em determinados trechos do livro. Não porque tive o privilégio de tornar-me seu amigo e da família, mas por saber como agem de forma sorrateira os poderosos quando seus interesses são contrariados.
Jamais colocaria a carreira como jornalista à prova para defender alguém se não tivesse certeza da probidade e da honradez que acompanham Willamara Leila de Almeida. Por ela, como citei anteriormente, de olhos fechados coloco a mão no fogo, certo de que não será queimada. “Biografia Interrompida” é leitura obrigatória, em especial para quem pretende compreender o Brasil em suas entranhas e vísceras. Vítima de injustiça e vilania, Willamara é e sempre foi correta, impoluta, verdadeira e transparente.
Impossível é adivinhar o amanhã, por isso esse modesto testemunho se faz necessário. Trata-se de indelével compromisso com minha consciência, com meus propósitos de vida, com minhas crenças, com meus dogmas profissionais: sempre estar do lado da verdade.
Encerro relembrando um telefonema que recebi, em Brasília, em 11 de outubro de 2005, uma terça-feira. Willamara, em econômicas palavras, disse que precisava conversar pessoalmente e me convidara para um almoço na sua casa, no dia seguinte. Na quarta-feira, 12 de outubro daquele ano, embarquei na capital dos brasileiros com destino a Palmas. Até hoje, sem lampejos e recuos, carrego no pensamento e no meu íntimo uma sensação: o que ouvi foi o gatilho para a ignomínia relatada no livro e que seria capaz de indignar os pretéritos e famintos leões da arena do Coliseu romano.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção
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