(*) Ucho Haddad
Quando estreei no jornalismo, há mais de 45 anos, fui chamado de comunista por defender a educação de qualidade para todos como forma de garantir o desenvolvimento do país e o progresso individual e social. Se apostar no conhecimento e na aprendizagem é coisa de comunista, então visto a cangalha sem constrangimento.
O tempo passou e cá estamos mergulhados em um caos social que, em grande parte, decorre do baixíssimo grau de conhecimento da extensa maioria dos cidadãos. Grandes veículos de imprensa têm se dedicado a noticiar o avanço da insegurança pública, sem questionar o que levou a este cenário de tragédia. Discutir as mudanças no modus operandi dos ladrões de celulares e joias, que agora não circulam em dupla em cima de motocicletas, de nada adianta. Lembro que a única cadeia que liberta é a cadeia da educação. A cadeia da educação liberta da ignorância, da pobreza e da opressão.
Ao Estado compete garantir segurança ao cidadão, como determina a Constituição, por isto defendo o combate à criminalidade. Parar motociclistas a torto e a direito nas ruas e avenidas leva a uma solução paliativa e pontual, pois a criminalidade continuará existindo porque a necessidade não tem limites. Ninguém ingressa no mundo do crime por escolha, mas por falta de oportunidade. A oportunidade só surge para quem tem doses medianas de conhecimento, para quem sabe escrever minimamente correto e consegue interpretar de maneira razoável um texto qualquer.
Aproveito a Semana Santa para escrever sobre a via-crúcis da educação e o calvário em que se encontra o conhecimento no Brasil. Quem discordar do meu pensamento, fique à vontade para me acusar de comunista. A cada novo dia que surge, minha indignação cresce diante do estrago causado pela educação de péssima qualidade.
Não pense que o estrago está presente apenas nas camadas desassistidas da população. Em muitos dos grandes veículos de imprensa, manchetes carregam erros gramaticais grosseiros que, confesso, causam arrepios n’alma. No rádio a situação é pior, tanto para os ditos jornalistas quanto para mim. Ao ouvir um erro gramatical grosseiro, apenas desligo o rádio. Lembro que sou amante de rádio. Sempre tenho um ao meu lado, mas venho perdendo o entusiasmo por causa dos atentados à soberania do idioma.
Alguém pode dizer que o melhor a fazer é deixa para lá, mas tenho direito à indignação. Disse o grande e saudoso Darcy Ribeiro, ex-ministro da Educação: “Só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar. E eu não vou me resignar nunca”. Assim como Darcy, “eu não vou me resignar nunca”.
São tantos absurdos gramaticais, que passaria horas descrevendo cada um. Quando um jornalista fala ou escreve “a maioria são”, “saiu para fora” e “encarar de frente”, entre outras bizarrices linguísticas, não sei se me irrito ou tenho a sensação do dever cumprido. Dizia o querido amigo Carlos Brickmann, jornalista dos bons que nos deixou, que “só encara de costas quem tem cara de bunda”. A situação piora de maneira assustadora quando em cena entra o tal “que seje”. Nesses casos aciono o interruptor da audição seletiva, encarno o surdo de ocasião e recorro a um olhar no estilo Monalisa. Resumindo, o Brasil é caso perdido.
Na quinta-feira, 17 de abril, fui ao posto de saúde para atualizar as vacinas. Antes das picadas, fui atendido por competente profissional de enfermagem, que em dado momento me perguntou como está a minha capacidade cognitiva. Respondi que leio e escrevo tanto, que o cérebro não tem tempo para me deixar na mão. É verdade que às vezes (talvez muitas) a situação é tão esdrúxula, que o melhor é desligar a cognição.
Aguardava na fila dos idosos para ser chamado à sala de vacinação, quando uma senhora, que passou por atendimento médico, recebeu sugestão da amiga que lhe acompanhava: “Você deveria aproveitar que está aqui e tomar a vacina contra gripe”. A mulher respondeu: “na segunda-feira”. A atendente replicou: “segunda-feira é feriado”. A mulher foi à tréplica questionando: “por qual motivo é feriado?”. A atendente respondeu: “não sei, só sei que é feriado”.
Pensei em entrar na conversa para informar às três incautas que em 21 de abril é comemorado o Dia de Tiradentes, o mártir da independência. Resolvi ficar quieto, sem colocar a colher no escárnio cultural. A acompanhante não demorou para regurgitar falso conhecimento. “Para os italianos é pascoela”, disse.
De novo tive vontade de intervir, mas fiquei calado. Pascoela é o domingo subsequente ao domingo da Páscoa, ou seja, neste ano acontecerá no dia 26 de abril. Por sorte optei pelo silêncio obsequioso, pois se tivesse falado em quasímodo, sinônimo de pascoela, a confusão seria grande.
Já escrevi diversas vezes e, com o devido pedido de desculpas, volto ao tema. Certa vez, em momento da carreira, uma patrulha sindicalista, incomodada com minhas críticas ao governo de então, acusou-me de ser falso jornalista por não ter diploma universitário. Ainda bem!
Não esquentei o banco da faculdade para – canudo sob a axila – escrever “a maioria são”, “sair para fora” e “encarar de frente”. Muito menos “que seje”. Também não coloco “e” depois da vírgula” porque um dia alguém me apresentou o tal “ponto e vírgula”. Sem contar os ditos influenciadores que inventaram o “tipo assim”. Influenciadores? “Tipo assim”?
Estudei muito (continuo estudando muito), li muito (continuo lendo muito – tropeço em livros), escrevi muito (continuo escrevendo muito). Tenho sede de aprender.
Talvez a chacina que a deseducação promove no idioma da velha Pindorama tenha ampliado o meu silêncio, mas também me levado de volta a fotografar com mais ênfase. Ao fotografar consigo ainda mais estar comigo mesmo, a registrar aquilo que traduz a minha essência, que espanta possíveis fantasmas. A fotografia me ajuda a mostrar o mundo como deveria ser ou como gostaria que fosse.
Jogaram a língua portuguesa na via-crúcis, impuseram à gramática um calvário sem-fim, açoitam a boa escrita a todo instante, crucificam o ensino sem piedade. Sem direito a ressuscitar. Ave Maria, rogai por nós, enquanto é tempo!
Boa Sexta-Feira Santa, bom Sábado de Aleluia, excelente Páscoa, sem colocar o “pé na jaca” de chocolate. Tenha um ótimo quasímodo, quero dizer, ótima pascoela, somente no outro domingo, não na segunda-feira próxima, feriado de Tiradentes.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.
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