A morte de Francisco e as manifestações covardes dos falsos centuriões da moral

(*) Ucho Haddad

Na infância, aos sete anos, acompanhando a Copa do Mundo de 1966 pelo rádio, minha avó materna, amante do futebol, dirigiu-se a mim e disse frase que até hoje norteia meu comportamento: “futebol, política e religião não se discute”.

Gosto muito de futebol, mas passo longe de polêmicas. Cada um tem seu time de preferência, terreno fértil para interpretações variadas e distantes da coerência. Política tornou-se palco da minha trajetória como jornalista. Não discuto, mas analiso. Em relação à religião, respeito todas as crenças, sem críticas aqui ou acolá. Todos os caminhos levam a Deus.

A segunda-feira começou enviesada com o anúncio da morte do Papa Francisco. Escolhido em 2013 para suceder a Joseph Ratzinger, o argentino Jorge Mario Bergoglio salvou a Igreja Católica da decadência. Com posicionamento voltado aos mais pobres, Francisco protagonizou um papado progressista, muitas vezes criticando chefes de Estado extremistas que apostam na discórdia e na guerra para manter o poder. Sempre clamou por paz, inclusão e pelo fim da pobreza e da fome no mundo.

Pensar livremente é um direito de todo cidadão, mas destilar ódio é algo que ultrapassa o terreno da repugnância. Planeta afora, há, por certo, muita gente comemorando a morte de Francisco. Pode parecer loucura, mas é o que ocorre. No Brasil, país de maioria católica, muitos comentários nos rodapés de matérias jornalistas são revoltantes, causam engulhos.

Se religião e política não podem avançar na seara da discussão, misturar fé com ideologia é abominável. Muita gente que ora, sem um motivo de fato, e vez por outra vai à igreja mais próxima para cumprir tabela, hoje deveria refletir sobre a própria religiosidade. Há os que estão a festeja a morte de um “comunista”. Assim era, é e sempre será visto o Papa Francisco, que dedicou a vida aos pobres desvalidos e marginalizados.

Francisco disse, de maneira precisa, que “estar ao lado dos pobres é evangelho, não comunismo”. O extremismo direitista que tenta tomar o Brasil de assalto defende a escolha de um Papa conservador. É o que se extrai dos comentários publicados ao pé de matérias jornalísticas sobre a morte do pontífice. Se defender os pobres, a inclusão e a tolerância religiosa é postura de comunista, como alegam os “détraqués” que se dizem conservadores, então engrosso a fila puxada por Francisco.

Conservadorismo religioso é fechar os olhos para os pobres e exaltar os empertigados que vão à missa desprovidos de coragem para se aproximar do confessionário? Não quero que pessoas cumpram o rito da confissão, mas que ao menos abram espaço para um mea culpa dos próprios pecados, que reconheçam as próprias falhas. Admitam que a vida só pode ser conjugada na pessoa do plural. Ou nós, ou nada!

Misturar fé com ideologia política não é a melhor das receitas, pelo contrário, mas escancara a essência desumana e torpe de quem balbucia falsas orações a Deus.

Católico e de fé inabalável, não sou carola, mas oro pelo menos duas vezes ao dia, sempre pedindo a Deus para que o cotidiano seja mais ameno, menos surpreendente. Oro pelos amigos do peito, pelos enfermos, pela paz e por todos que partiram. Sou fã de igreja vazia. Lá não vou para ser visto ou para ser lembrado, mas para estar com Deus. Assim, o silêncio é a melhor companhia. Além disso, a hipocrisia que sobra em determinadas celebrações religiosas me tira do sério.

Certa vez, fui à igreja para participar de missa em memória de alguém falecido – não me lembro quem. Como sempre, sentei-me no último banco. Afinal, se a irritação der o ar da graça, a porta da rua é serventia da casa. Naquele dia, ao final da missa, o padre leu algumas mensagens e pedidos de graças. Um deles, que me irritou profundamente, foi de uma serva (sic) solicitando ajuda divina para vender o apartamento. Pelo que sei, Deus não é corretor de imóveis.

Os ditos conservadores são adeptos do “venha a nós, ao vosso reino, nada”. A pessoa chega ao ridículo de rogar pela intercessão divina para vender um imóvel, mas ao se deparar com alguém em situação de rua fecha os olhos para não enxergar a tragédia, tapa o nariz para não sentir o cheiro desafiador da miséria. Há os que se ajoelham diante da imagem de um santo e chegam às lágrimas durante a reza, mas julgam e criticam a torto e a direito, bisbilhotam a vida alheia, são movidos pela maledicência. Sem contar os que carregam a imagem do santo de devoção nas costas do telefone celular, mas achincalham e ofendem o próximo de forma deliberada e contumaz.

A asquerosa polarização política que tomou conta do Brasil acabou por sequestrar a fé. Dizem que o Estado é laico, mas os fundamentalistas da fé venderam a alma aos demônios da política. O melhor exemplo desse conluio espúrio é a tal “bancada evangélica” que, no Congresso, ousa ditar regras e normas em nome de interesses eleitorais. Fala em nome de Deus a todo instante, mas faz acordo com luciferianos.

Aqueles que defendem a escolha de um Papa conservador deveriam se perguntar por qual razão Francisco decidiu morar na Casa Santa Marta, em vez de desfrutar do conforto dos aposentos da Santa Sé. Não entro em detalhes porque tomaria o tempo dos leitores, mas se há no planeta quem conhece os bastidores da Praça São Pedro, esse certamente sou eu. Bergoglio optou pela Casa Santa Marta porque é criminoso o conservadorismo que durante séculos dominou a Igreja Católica.

Sobre as críticas rasteiras regurgitadas pelos tais conservadores, cabe-me resgatar a frase dita por Jesus no momento da crucificação: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que estão fazendo.” (Lucas 23:34)

Os críticos do Papa batem no peito, muitas vezes coberto por uma sequestrada camisa da seleção, e encarnam os centuriões da moralidade, da fé ideal, dos bons costumes. Em algum momento, em especial nas agruras, recorrerão a um só Deus, ignorando as barbaridades cometidas. A sorte desses desalmados é que o perdão divino não tem filtro. Porém, lembro que ninguém passa para o outro lado da vida se o carnê existencial não estiver com todas as parcelas pagas.

Caro Papa, em “Deixa isso pra lá”, o saudoso Jair Rodrigues cantou: “deixa que digam, que pensem, que falem” … Caso encontre a minha avó, Alice, diga a ela que não resisti. Tamo junto, Francisco!

(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.

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