(*) Ucho Haddad
Em 16 de junho passado, fui obrigado a largar a pena por algum tempo. Imaginei, no primeiro momento, que ficaria longe da escrita por semanas, também afastado da fotografia, minha paixão de sempre. A política havia mergulhado em espiral de polarização tão assustadora e preocupante, que cheguei a pensar que um curto período sabático não seria de todo mal. Na seara das imagens, a organização e a burocracia de quatro projetos fotográficos incríveis me impediam de empunhar as câmeras com frequência. Enfim, precisava de um tempo.
Depois de uma queda, o braço direito fraturado, quinze dias de internação, sete horas de cirurgia complexa, uma placa e doze parafusos – sem contar medicamentos, curativos, radiografias constantes e outros quetais – e nada menos do que 45 pontos, descobri que o éden que me vendera a equipe médica estava a anos-luz de distância, talvez em algum buraco negro do universo. Disseram os médicos, de bate-pronto, que tudo estaria nos conformes em três meses. Acreditei!
Resiliente e obstinado – alguns dizem que sou teimoso –, dediquei-me de forma intensa à fisioterapia e à terapia ocupacional. Horas e mais horas de exercícios dos mais diversos, com desafios enfrentados sem medo, mas com dor. Os profissionais que me acompanharam em ambas as atividades são tão competentes, que elogiá-los à direção do hospital era o mínimo que poderia fazer. Dedicadíssimos, excelentes, quase mágicos, mas não operam milagres.
Dois meses após a cirurgia, percebi que os movimentos do antebraço e da mão direita não retornavam, mas continuei com a fisioterapia e a terapia ocupacional. Busquei os médicos para relatar o quadro. Soberbos, crentes que são divindades, decidiram friamente que era preciso trocar a placa e a dúzia de parafusos. Alegaram os semideuses que o nervo responsável pelos movimentos da mão poderia estar sob a placa parafusada no braço, talvez rompido. Sem opção, aceitei a ideia de nova cirurgia. Quando? Nem os deuses souberam cravar uma data. Fiquei no vácuo, sem escrever, sem fotografar.
A vida me presenteou com larga dose de paciência, torcer pelo Corinthians me fez – ainda faz – mais paciente. Não tenho roupa de monge tibetano no armário, mas creio que todo acontecimento tem uma razão, ao menos uma explicação plausível. Mesmo assim, o meu radiador prenunciava iminente fervura.
Enquanto aguardava a data da nova cirurgia, avancei nas sessões de fisioterapia e terapia ocupacional. Há exato um mês, quase 6 horas da manhã, estava de saída para o hospital quando o silêncio do fim da madrugada foi interrompido por ruído forte que brotou do braço. Em seguida, dor intensa e que persistiu por longos e teimosos minutos. Nova radiografia, parafusos se romperam. A primeira informação dava conta que um parafuso resolveu se rebelar.
18 de setembro – Médico entra, médico sai… Os ponteiros do relógio rodavam em frenesi, fazendo sombra às minhas interrogações. Decisão médica: estava internado, com a roupa do corpo, a tipoia e um punhado de dúvidas. Na manhã seguinte, perguntei quantos parafusos haviam quebrado. Resposta: quatro ou cinco. Milagre da multiplicação! Veio à mente a famosa expressão do português Bocage: “pior a emenda que o soneto”. Balanço final: três parafusos quebrados. Como se não bastassem os parafusos soltos na cabeça, agora os tenho no braço.
Foram cinco longos e entediosos dias, olhando para o teto, fazendo nada, aguardando a data da nova cirurgia. Por sorte, sem dor. Não descansei enquanto não convenci os médicos de que ócio por ócio, melhor em casa. Com a promessa de retornar dois depois para a aguardada cirurgia, troca de placa e parafusos, além de remendo no “nervo radial”. Muito prazer, senhor Radial! Filho do Ipiranga, com muito orgulho, e criado na Mooca e na Vila Prudente, a única radial que reinava na memória era a Radial Leste. Agora tem concorrência.
25 de setembro, 5h30, centro cirúrgico… Aguardo quatro horas para ser levado à sala de cirurgia. Nesse período dormi, acordei, orei, conversei com Deus. Eis que surge uma enfermeira, estilo metida e agarrada ao celular e checando redes sociais, para dizer que o jejum fora suspenso e a cirurgia cancelada. Cobrei explicação de ao menos um dos semideuses. A fulana volta e diz que as divindades estavam ocupadas e alguém conversaria mais tarde comigo no quarto. Exigi deixar o centro cirúrgico imediatamente, ao que ela respondeu que deveria aguardar alguém do transporte de pacientes.
Aproveitando que estava sem a roupa de monge tibetano, na verdade envergando um mequetrefe camisolão, “rodei a baiana”. Keanu Reeves é autor de uma frase que traduz a minha existência: “Não quero fazer parte de um mundo onde ser gentil é visto sinal de fraqueza.”
Contudo, com a devida licença do cavalheirismo que me acompanha, na fila dos trouxas fico em penúltimo. Pulei da maca, subi a voz e disse que estava de saída com todos os adereços que haviam pendurado no meu braço. Voz alta, disse que ninguém me deteria. Caso tivesse dúvida, que telefonasse para “fulano” e citasse meu nome. Não resisti e dei uma “carteirada” – talvez a primeira em meio século de jornalismo. Do nada, como extraterrestres, surgiram aqueles que me levariam de volta ao quarto.
Vencida a primeira epopeia, já no quarto, aguardei exatas seis horas para, de fato, saber o motivo do cancelamento da cirurgia. Material infectado (placas, parafusos, chaves e brocas). Só consegui a resposta porque, sem rodar a baiana, joguei o trio elétrico na enfermagem. Ameacei ir embora do hospital, no estilo “aqui tem um bando de loucos”, caso ao menos um médico não desse a devida explicação.
Deixei o hospital levando debaixo do braço esquerdo – o direito está avariado – um pedido de internação para nova cirurgia. 2 de outubro, 5h35, sou o primeiro a chegar no centro cirúrgico. Sem delongas e milongas, fui direto para a sala de cirurgia, quase um cockpit de nave espacial, com direito a badulaques tecnológicos de toda ordem. Chega o anestesista, no vácuo as perguntas de praxe. Respondo: não bebo, não fumo, não faço uso de drogas, apesar de o Brasil ter ultrapassado as fronteiras. Com uma das agulhas da anestesia já fincada no braço, aguardando abrir a torneira do sonífero, surge a derradeira pergunta. Tem alguma alergia? Sim, a políticos corruptos, fascistas, bandoleiros, extremistas.
A sala começa a encher de gente. Três cirurgiões traumatologistas, anestesista e assistentes que, paramentados, aguardavam a chegada da equipe de cirurgia da mão. Embalado por muita tranquilidade, decidi animar o ambiente e jogar conversa fora. Foram opiniões, casos, histórias, causos, estórias, experiências de vida para lá e para cá. Eis que chegam três caixas, supostamente desinfectadas, com os materiais (placas, parafusos, chaves e brocas). Caixas abertas, material infectado. Pedidos de desculpa vociferados, dois desolados cirurgiões sentam-se ao chão, cabeças baixas como se não acreditassem no que estava acontecendo. Chamados os representantes da empresa responsável pela descontaminação (sic) do material, novos pedidos de desculpa. Sem perder o humor, disse que para uma nova quinta-feira restavam apenas sete dias.
Alta médica, volto para casa com novo pedido de internação para 9 de outubro. Cumprida a burocracia da internação, fui direto para o centro cirúrgico, mas antes troquei a roupa do corpo pelo esquisito camisolão que me inspira a rodar a baiana.
Éramos quatro aguardando a chamada para as respectivas salas de cirurgia. Dois foram chamados, para trás fiquei na companhia de uma senhorinha que aguardava prótese no quadril. Antessala de centro cirúrgico às vezes parece sala de estar. Logo pensei que se fosse preciso rodar a baiana de novo, a senhorinha sequer poderia sacudir o derrière. Não demorou muito para a tal senhorinha, mesmo com o quadril avariado, acabar dançando no sentido figurado (material infectado). E voltou para casa, não sem antes dizer que não remarcassem a cirurgia para a próxima quinta-feira (16), pois já tinha compromisso.
Após poucos minutos, dois cirurgiões (os mesmos das vezes anteriores) aproximam-se da maca onde estava e, como se fosse um jogral da desolação, balbuciam “de novo” (material infectado). Exausto, com a paciência nos alicerces das catacumbas, retornei para casa, mas ainda não sei se voltarei ao hospital em 16 de outubro próximo, como sugere a mais recente guia de internação. Não tenho compromisso, como a senhorinha dançou comigo, mas é grande a minha vontade de, parodiando Geraldo Vandré, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. É o que decidi depois de refletir bastante.
Decidi também que farei enorme esforço para retomar a escrita e as publicações, mesmo “catando milho com a mão esquerda”. Quando estreei no jornalismo, me chamavam de comunista por defender os interesses da população e o mesmo ponto de partida para todos, pobres ou ricos. O tempo passou, muito tempo, e amigos próximos passaram usar o termo “canhoto” para rotular meus ideais. Gostei da brincadeira e por ora digo que sou canhoto por dentro e por fora.
Ao longo dos últimos quatro meses, recebi o carinho de amigos, pessoas queridas, que buscavam informações sobre a minha recuperação, ainda na estaca zero. Entre os mais próximos, os telefonemas e as mensagens batiam ponto todos os dias. Nesse grupo, duas pessoas especialíssimas foram – e ainda são – presentes, dedicando carinho e atenção que transcendem a amizade rara com que me presenteiam diuturnamente.
Em momentos distintos, ambas fizeram a mesma cobrança. Uma disse que por ser íntimo das palavras deveria escrever sobre a minha “Via Crucis” no centro cirúrgico, outra cobrou um texto explicando aos leitores a minha ausência. Topei! Adversários e inimigos comemoraram meu acidente, mas a esses detratores lembro que estou vivo, cabeça boa – os parafusos soltos são os de sempre – e pensando cada vez mais.
Às leitoras e aos leitores devia um recado, um sinal de vida. Não vim ao mundo com a força e a coragem de Eunice Paiva, assim como não tenho o talento inquestionável das festejadas Fernandas (mãe e filha, Montenegro e Torres), mas fica a mensagem: “ainda estou aqui”. Lúcido, coerente e pronto para lutar pela nossa democracia. Àqueles que tombarem no meu caminho, fiquem tranquilos, pois meu senso de humanidade está intacto e ainda (por enquanto) tenho a mão esquerda para estender.
Ainda estou aqui!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção.
As informações e opiniões contidas no texto são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo obrigatoriamente o pensamento e a linha editorial deste site de notícias.



