A questão do consumidor colecionador

(*) Rizzatto Nunes

rizzatto_nunes_05Hoje retorno a um assunto de que aqui já tratei, que me foi sugerido por meu amigo Outrem e que me parece bem atual. Com efeito, meu amigo contou que, certa vez, foi convidado para ir com outro amigo dele a um jantar na casa de um empresário. “Modo de dizer”, disse ele. “É que o empresário era investidor de empresas falidas… Sei lá. Mas tinha muito dinheiro, pelo menos pelo que pude ver de sua casa e demais coisas e também do que ele falava”.

Pois bem. Conta meu amigo que, lá chegando, foram convidados para ir ao andar debaixo, numa espécie de subsolo, para conhecer a adega de vinhos. Suntuosa, muito bem equipada e com um estoque de centenas de garrafas, muitas delas raras adquiridas em leilões internacionais e, claro, caríssimas. Todas devidamente catalogadas pelo próprio proprietário que, com muito orgulho, mostrou-as dando ênfase em vários rótulos.

O. Ego animou-se. Pensou: “Me dei bem. Hoje tomarei um vinho que jamais poderia tomar”. Mas que nada. Feita a visita à adega, o anfitrião os levou para o andar térreo até outras três adegas dessas compradas em lojas de eletrodomésticos (embora das maiores e mais sofisticadas) e, abrindo uma das portas, escolheu duas garrafas de vinho e dali dirigiram-se à mesa para o jantar. Eram bons vinhos, mas nada que pudesse fazer frente aos raros e espetaculares da adega e que chegaram a passear nos sonhos de meu amigo.

Depois, quando deu, ele perguntou ao amigo que o acompanhava: “Ele não bebe os vinhos lá debaixo?”. “Não”, respondeu o amigo, “É só para ver. Não para beber”. Outrem Ego retrucou: “Ele nunca beberá? Nem em ocasiões especiais? Ou com pessoas especiais?”. “Acho que não. Até porque, pela idade dele e com tantas garrafas armazenadas, para toma-las todas ele já deveria ter começado a fazê-lo há muito tempo. E essas que ele bebe, ele compra a toda hora”.

Quando meu amigo narrou o ocorrido, disse: “O sujeito compra um monte de vinhos só para olhar para os rótulos e garrafas? Ele as admira como se fossem troféus! Se ainda guardasse como investimento, se deixasse os vinhos envelhecerem e depois os vendesse… Ou, então, podia guardar as garrafas vazias junto das avaliações feitas após ter bebido o conteúdo!”.

Querido leitor, devo confessar que essa história fez-me lembrar de um artigo que eu li há muitos anos numa revista de avião e que teve forte impacto em mim. Era um pequeno texto desses que pedem que nós reflitamos sobre algo em nossas vidas e que, talvez, por falta de tempo, nós acabamos não dando tanta importância ou mesmo porque aceitamos sem querer as coisas como elas são, como elas se apresentam ou como são impostas, determinadas pelas circunstâncias sociais etc. O texto dizia mais ou menos o seguinte.

O escritor contava a estória de um homem, casado, que entrara no quarto do casal e abrira a gaveta da cômoda onde sua mulher guardava a lingerie. Ele remexeu nas peças, olhou no meio e por baixo e acabou encontrando uma caixinha, que estava embrulhada com papel de presente. Intrigado, a examinou, franziu a testa, forçou os olhos, pensou e após lembrar de algo disse para si mesmo: “Ah! É aquele bracelete de ouro que eu dei para ela há três anos. Ela gostou tanto que guardou dentro da caixinha, embrulhada com o mesmo papel que a moça da joalheria usou. Ela gostou tanto e teve tanto cuidado que nunca usou”. Depois, desembrulhou o presente, abriu a caixa, pegou o bracelete e disse: “Hoje ela irá usar!”. Dai, dirigiu-se à sala onde estavam outras pessoas, foi até o caixão onde jazia o corpo de sua mulher morta e colocou o bracelete em seu pulso.

Depois disso, o autor do artigo perguntava ao leitor se ele tinha em casa alguma coisa comprada e nunca usada. Ele dizia que as coisas que nós possuímos, independentemente de preço ou valor, só faziam algum sentido se nós as usássemos, se déssemos a ela uma finalidade, uma utilidade. Ele perguntava se o leitor tinha em casa um faqueiro nunca usado, guardado dentro da própria caixa feita pelo fabricante, se tinha peças de porcelana mantidas num armário para um dia serem usadas num jantar nunca oferecido, se tinha roupas dentro do armário que não mais usava nem iria usar ou que nunca usara etc.

Ainda recordo da sensação que tive ao ler o artigo. Caiu-me uma ficha e eu lembrei que havia adquirido um faqueiro há muito tempo e que ele estava guardado dentro da caixa. Tomei a decisão na mesma hora. Assim que cheguei em casa, separei todos os talheres que eu tinha em uso, mas que já eram antigos (foi por isso que eu comprara o faqueiro). Dei de presente a quem precisava e coloquei em uso o faqueiro novinho, retirado de dentro da caixa.

Esse artigo me tocou e eu depois fui, criticamente, me vigiando para deixar de ter em casa produtos nunca usados, o que eu faço até hoje, mas que, claro, não interessa referir. O que eu pretendo contando essas histórias é colocar a questão como reflexão nesta nossa sociedade capitalista, na qual muitos nada têm e também muitos esbanjam sobras ou colecionam objetos que não serão utilizados. Já houve quem chamasse a nossa sociedade de sociedade de colecionadores.

Há, é verdade, uma tradição na coleção de objetos. Colecionam-se selos, moedas, joias etc. e que remontam a tempos antigos, como comprovam as exposições de museus. Mas, com o avanço da produção e reprodução cada vez mais precisa e mais barata, os modos de colecionar acabaram crescendo. Naturalmente, colecionam-se figurinhas até hoje, mas até isso é diferente de nosso romântico tempo de criança. Com a facilidade das compras e quantidade de ofertas, muitas pessoas passaram a colecionar uma série de objetos. Colecionam-se canetas, bolsas, sapatos, gravatas, ternos, vestidos, automóveis (!) etc.

Claro que isso é problema de cada um. Quem pode acaba fazendo se lhe aprouver, mas que é estranho manter certas coleções é. Quero dizer, se for mesmo para estabelecer uma coleção autêntica, com catálogo e demonstração como num museu (não importando nem local nem tamanho) talvez se justifique. O problema, ao que parece, está mais relacionado ao que o autor disse no artigo. Muitas vezes, a pessoa guarda coisas, repetidas ou não, para nunca usar e daí ela perde a finalidade.

Evidentemente, que há muitas coisas que se pode ter em casa para um dia usar de verdade. Se a pessoa mantém guardados livros, dvds, cds ela certamente poderá utilizá-los (sei que dvds e cds estão em fase de extinção, mas quem os têm pode usá-los). Aliás, esse é o exemplo típico de coleção que vale a pena ter. Livros, filmes, músicas. Mesmo que nós compremos um livro para apenas um dia no futuro lê-lo. Quem sabe, num dia de chuva, a pessoa olhe para o livro na estante e, finalmente, resolva lê-lo. Penso que, realmente, vale mesmo a pena tê-lo ali por perto.

Mas, valerá guardar gravatas? Um homem precisa mesmo ter em seu armário vinte ou trinta gravatas (Ou mais)? Uma mulher trinta bolsas ou trinta sapatos (ou mais)? Aliás, como o design desses produtos varia com o tempo (quero dizer, com a moda imposta ao comportamento social, que muda com o passar do tempo), muitos deles ficarão sem utilidade e muitos sequer serão usados.

É isso! Apenas uma exposição sobre uma questão que, talvez, permita uma reflexão sobre os nossos modos de consumo.

(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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