(*) Rizzatto Nunes
Hoje fujo um pouco do tema do consumidor. Falarei de invasões (se bem que, se quisesse, eu poderia abordar a “invasão” como produto de consumo, na medida em que seus agentes seguem a ideia de organização unilateral, da oferta e da publicidade, com cartazes, slogans etc., modelos típicos do capitalismo contemporâneo).
Mas, sem entrar propriamente no mérito das invasões e ocupações especialmente nas escolas, falo delas a partir de uma invasão da qual participei como testemunha nos tempos da ditadura.
Com efeito, no dia 22 de setembro de 1977, o prédio sede da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), na Rua Monte Alegre, nas Perdizes, foi invadido por policiais militares e também civis, chefiados pelo então Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o Coronel Erasmo Dias. Naquela ocasião organizava-se na PUC um encontro nacional dos estudantes visando restabelecer a UNE – União Nacional dos Estudantes, que estava proibida pelo regime militar.
Durante a invasão, os policiais atacaram estudantes e professores com cassetetes e bombas de gás. Vários estudantes foram feridos, pisoteados e queimados. Quase mil estudantes foram presos e conduzidos em ônibus da prefeitura para o Batalhão Tobias de Aguiar e também para o DOPS – Departamento de Ordem Política e Social.
Na manhã seguinte, o então Cardeal-Arcebispo e Grão-Chanceler da PUC-SP, Dom Paulo Evaristo Arns, ao saber dos fatos, fez uma manifestação que se tornou famosa: “Na PUC, só se entra prestando exame vestibular. E para ajudar o povo, não para destruir as coisas”.
Eu estava lá. Cursava o 3º ano do Curso de Direito.
Dez anos depois, precisamente no dia 22 de setembro de 1987, estudantes e professores organizaram no campus uma comemoração para lembrar dos difíceis momentos da ditadura e do dia da invasão. “Comemorar para não esquecer e para que não se repetisse jamais”, era o que se dizia.
Eu estava lá. Era um jovem professor de Direito. Dava aulas de Introdução ao Estudo do Direito para os alunos do 1º ano.
Logo que cheguei e desci pela rampa que se inicia na Rua Monte Alegre, dando acesso aos prédios, li numa faixa estendida algo como “Professor, não dê aulas hoje. Libere os alunos para participarem do evento que lembrará a invasão executada pela ditadura!”
Pensei comigo mesmo: “Ok. Vou dispensar meus alunos”.
Fui até a sala de aulas e esperei que eles chegassem. Quando todos lá estavam eu disse que iria dispensá-los da aula para que eles pudessem participar do evento. Mas, disse também: “Se vocês quiserem, antes de irem à reunião, podemos falar aqui mesmo na sala, sobre a invasão e sobre o clima reinante naqueles dias, pois eu sou testemunha do que ocorreu. Sou um dos alunos que estavam na PUC naquele dia”.
Os alunos, então, concordaram que nós iríamos conversar um pouco sobre o assunto e depois eles seriam dispensados.
Passados uns dez, quinze minutos, enquanto nós conversávamos, ouvimos vozes exaltadas no corredor em frente a porta da sala. Eram estudantes que estavam passando de sala em sala para descobrir “traidores” que estariam dando aulas. Um deles, o mais exaltado gritava “invade, invade. Vamos acabar com a aula desse professor fascista”.
O “professor fascista” era eu, que estava conversando com meus alunos exatamente sobre a invasão e os acontecimentos daquele período. Falávamos sobre o modo de ação dos invasores, que não pediram licença, que chutaram portas, gritaram, bateram, espancaram…
Os estudantes do corredor pararam em frente a porta e a chutaram algumas vezes; aumentaram os gritos, mas dentre eles se podia ouvir um “comandante” que dizia “invade a sala, invade a sala!”.
Meus alunos e eu ouvíamos atônitos. Quando pensávamos no que fazer, um estudante que estava na frente abriu a porta e a empurrou com força. Ele olhou para mim e disse “fascista” e invadiu a sala seguido de mais alguns.
Eu, por impulso o empurrei, porque ele invadira a sala. Ele foi para trás, ficou sob o batente da porta e disse para mim: “Vai pra assembleia seu idiota. Vocês estão aí à toa furando nossa paralisação”. Eu respondi: “Nós estávamos discutindo invasões, tal qual esta aqui”.
Eles nos xingaram novamente e acabaram indo embora pelos corredores para “caçarem mais furadores da paralisação e fascistas”. Alguns minutos depois nós deixamos a sala.
Guardadas, naturalmente, as devidas proporções, o modo truculento e preconceituoso dos estudantes que nos xingaram, chutaram a porta e invadiram a sala, lembrou o modo como a invasão da PUC fora feita. Eles nos julgaram e condenaram, sem saber o que fazíamos, não pediram licença para entrar na sala e foram embora sem terem nos ouvido. Faltou apenas a violência, graças a Deus! Mas sempre pensei que a violência estava latente e poderia ter ocorrido.
Deixo, pois, essas linhas para a reflexão do leitor e confesso que resolvi escrever este artigo após ler uma matéria que tratava das recentes ocupações de escolas, na qual foi descrita uma verdadeira invasão. Transcrevo, assim, para terminar um trecho dessa matéria:
“’Não foi uma ocupação, foi uma invasão’, criticou o aluno de direito Gustavo Dal Cortino. ‘Estávamos em aula, quando chegaram pessoas mascaradas, com atitude agressiva. Fomos obrigados a sair em fila indiana. E, já do lado de fora, chamados de fascistas, quando foram eles quem nos impediram o direito de ir e vir. Nos chamaram de playboys, sem sequer nos conhecer. Eu vim da escola pública, ando de ônibus. Eles ocuparam o prédio antes que pudéssemos votar qual nossa posição’, completou” (i)
(i) http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/11/04/alunos-ocupam-predio-da-ufpr-professores-fazem-cordao-para-evitar-conflito.htm
(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.