(*) Maria Lucia Victor Barbosa
Cismando pelos cantos, não sei porquê, fiquei rememorando Minas Gerais. Inevitavelmente, compassadamente, me veio assim como num assombro de saudade, muito inteira e no centro das montanhas que brincam de roda, minha Belo Horizonte. Consolo de quem não vai lá por anos a fio, a recordação ora foi perfil de pedra sabão ora desenhou ladeiras e minha vida subiu e desceu pelo passado sem o mínimo cansaço.
Perguntei-me, então, se minha mineiridade não havia se esvaído nas idas e vindas de minha existência, exilada que estou nestas lonjuras das Gerais à sombra das araucárias. É que tem me faltado paciência, ando falando demais e tenho confabulado e conspirado pouco. Também já não sei se meu olhar de esguelha anda correto. Além do mais, me esqueci como se dá rasteira em vento. Para piorar as coisas pisei no escuro e andei no molhado, coisa que mineiro não faz. E, ai meu Deus, estiquei conversa com estranho, acreditei no fogo onde só havia fumaça e o mais grave: arrisquei sem ter certeza.
Essas imprudências podem ser fatais e Minas, que sempre espia de dentro dos mineiros, condena os filhos que se afastam de suas veredas de sabedoria. Como escreveu Paulinho Assunção:
Um fantasma, uma fileira de montanhas.
Um profeta, uma fileira de montanhas.
Uma conspiração, uma fileira de montanhas.
O olho de Minas vê pelas frestas.
O olho de Minas me olhou pelas frestas e eu soube que não adiantava fugir mesmo estando meio destreinada, meio distraída dos requintes de sagacidade que me foram ministrados com o rigor de sacramentos naqueles solos montanhosos.
Nesta hora, Carlos Drummond de Andrade me acudiu e consolou. Nos seus versos estava estampada a impossibilidade do recuo de ser mineiro:
Minas não é palavra montanhosa.
É palavra abissal. Minas é dentro e fundo.
Aliviada, buscando refazer os caminhos dos tropeiros, dos mineradores, dos inconfidentes, arrisquei-me a subir na Maria Fumaça que não existe mais, mas que me chamou de longe com seu apito fantasmagórico. Quando começou a viagem imaginada, Vanessa Neto poetisou por mim:
Vejo pela janela do trem que cheguei à Minas.
Olhando longe procurei situá-la com seu perfil de pedra fria.
Sinto que volto docemente a ser menina: São os olhos de Minas que
me vigiam.
Vi, então, com a clareza do absurdo e pelas janelas do tempo, o desfile histórico da opulência do ouro em longínquos séculos e a miséria atual das pequeninas cidades perdidas entre névoas e pobreza. Foi quando de novo Drummond me sussurrou:
De nossa mente lavamos o ouro, como de nossa alma um dia
os erros se lavarão na pia da penitência.
Será que lavei mesmo o ouro de minha mente? Ou serei como o poeta Jota D’Angelo, que escreveu:
Quero um quinto desse ouro
escondido no cascalho.
Quero um quinto do seu braço,
quero um quinto do seu corpo.
Quero um quinto do esforço
Que se faz e que não faço.
Fazer faço, mas não o suficiente, apesar de querer.
Mas já é hora de apear da Maria Fumaça, pois refresquei minha memória, meus sentimentos, meus mares feitos de montanhas, meu ouro particular. Agora estou pronta para Guimarães Rosa:
Minas Gerais… Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão.
(*) Maria Lucia Victor Barbosa é mineira de Belo Horizonte.