(*) Ucho Haddad
Há no jornalismo nacional termos cunhados com tanta precisão, que arrisco afirmar que sempre serão atemporais, talvez eternos, pois a realidade brasileira dificilmente deixará o status quo que conhecemos. Pelo menos dois desses termos merecem destaque: “país da piada pronta”, do sempre bem-humorado José Simão, e “direita xucra”, do competente e detalhista Reinaldo Azevedo. Para quem deseja compreender a barafunda em que se transformou o Brasil, os dois termos acima são imprescindíveis no cotidiano tupiniquim.
O País ainda faz as contas da tragédia de Brumadinho, talvez continue fazendo por longos dias, mas o noticiário verde-louro foi tomado pelo estica e puxa que dominou o pedido do ex-presidente Lula para deixar temporariamente a prisão em Curitiba e participar do funeral do irmão Vavá. Foi o suficiente para a “direita xucra” entrar em ação, regurgitando nas redes sociais e em alguns veículos da imprensa teorias emolduradas pelo absurdo. O que já era esperado. Até porque, como cantou Chico Buarque em “Cotidiano”, “todo dia ela faz tudo sempre igual”.
Só mesmo alguém sugado pelo torvelinho da parvoíce para acreditar que Lula, de fato, gostaria de deixar a capital paranaense para acompanhar o sepultamento de Genival Inácio da Silva, em São Bernardo do Campo. Homem de pouco estudo, a ponto de ser chamado corriqueiramente de apedeuta, Lula é dono de inteligência política invejável. Não tivesse enveredado pelo mundo do crime, por certo seria um dos maiores políticos do século de todo o planeta. E dessa tese comungam alguns moderados integrantes da direita com quem convivo de forma pra lá de pacífica. O que é bom sinal, pois o segredo da democracia está na convivência parcimoniosa dos oximoros.
Apesar disso, ouvi de alguns comentaristas (sic) políticos da extrema direita, nas últimas horas, absurdos inenarráveis acerca da decisão de Lula de não ir ao enterro do irmão, depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter acatado parcialmente seu pedido, mesmo que com atraso, derrubando decisões de instâncias inferiores da Justiça. Um desses ensandecidos e radicais comentaristas (sic) ousou afirmar que de tudo Lula tira proveito político. No lugar dele faria o mesmo. Afinal, existir em sociedade é um ato político. Em suma, se quem sai na chuva é para se molhar, que aproveite o maior número possível de gotas celestiais.
Tenho enormes e marcantes diferenças políticas e ideológicas em relação a Lula e muitos dos “companheiros”, mas não posso atropelar a coerência e deixar de reconhecer a sua capacidade de pensar politicamente a maior parte do tempo. Ao requerer à Justiça algo que a Lei de Execução Penal (LEP) – artigo 120 – lhe dá direito, o ex-presidente sabia que era remota a chance de seu pedido ser deferido. Afinal, Lula, gostem ou não os direitistas descontrolados, é importante o suficiente para que os envolvidos na recusa tirassem proveito político de suas respectivas decisões.
Alguém há de contestar essa minha afirmação, mas não se pode esquecer que todos os que rejeitaram o pedido formulado pela defesa do petista, antes da chegada do pleito ao STF, dependem do atual presidente da República para eventuais promoções. Como Bolsonaro nutre ojeriza por Lula, qualquer explicação adicional torna-se desnecessária. Mesmo assim, é importante ressaltar que todos os que negaram o pleito do petista têm ligação, direta ou indireta com o atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, responsável pela condenação de Lula, enquanto juiz da Operação Lava-Jato.
Porém, acabou acontecendo exatamente aquilo que de fato beneficiaria o ex-metalúrgico: a rejeição do seu pedido. Lula lucrou muito mais politicamente com o “vai e vem” de seu pedido na Justiça do que com sua eventual participação no funeral do irmão. Há algum pecado nisso? Na minha modesta opinião, nenhum.
Muitos dos que ainda passam dia e noite a criticar Lula e seus sequazes, como forma de justificar os seguidos erros e absurdos cometidos por um governo trêfego e trôpego, alegam que o artigo 120 da LEP trata da possibilidade da saída temporária do preso no caso específico. Se o que é possível não é impositivo, que a Justiça seja justa, como deveria ser, e imparcial, como prega sua folclórica cegueira.
O Brasil vive um momento peculiar, no qual parte da sociedade busca justiçamento, algo bem diferente de justiça. Na verdade, o que causa espécie e muita preocupação é usar a lei para promover revanchismo ideológico, o que tem acontecido sem cerimônia e de maneira insistente por parte de alguns agentes do Estado.
Vamos aos fatos… Presos perigosos já foram beneficiados no âmbito do artigo 120 da LEP, mas no caso de Lula era preciso exacerbar o leguleio com o intuito de satisfazer a sanha doentia de alguns. Na democracia deve sempre prevalecer a isonomia e o império da lei. Por isso o artigo 5º (caput) da Constituição é claro ao estabelecer que “todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza”. Mas não é exatamente isso que temos visto no Brasil.
Sem retroceder muito na linha do tempo, até porque serviria apenas para embaralhar o cenário, recorro a alguns casos pontuais para não apenas comprovar a falta de isonomia jurídica no tratamento de investigados e condenados, mas acima de tudo para demonstrar o comportamento dúbio e nauseante do brasileiro diante de fatos distintos.
O jornalista Antônio Marcos Pimenta Neves tornou-se nacionalmente conhecido por ter assassinado friamente, e pelas costas, sua então namorada Sandra Gomide, também jornalista. Em maio de 2006, Pimenta Neves foi condenado a 19 anos, dois meses e doze dias de prisão, mas começou a cumprir a pena (reduzida por decisão do STJ para 14 anos, dez meses e três dias) em maio de 2011, quando seu último recurso foi rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse caso prevaleceu a chamada presunção de inocência, especificada no inciso LVII do artigo 5º da Carta Magna: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Condenado acertadamente no caso do apartamento triplex no Guarujá (outras condenações estão a caminho), Lula tem o mesmo direito de recorrer em liberdade. E que ninguém venha com o discurso visguento e malemolente de que o STF decidiu a favor do cumprimento provisório da pena após condenação em segunda instância, pois isso é consentir com o assassinato de cláusula pétrea da Constituição. E se a cláusula é pétrea, não pode ser modificada nem interpretada ao sabor do vento. Ademais, um homicida oferece muito mais risco à sociedade do que um corrupto, mesmo que notório.
Outro caso que ultraja a legislação é a condução coercitiva para interrogatório ou depoimento, medida que a lei permite apenas quando deixam de ser atendidas duas intimações. Tão logo seu nome eclodiu no olho do furacão da Lava-Jato, Lula foi conduzido coercitivamente para depor, sem que ao menos tivesse sido intimado, como manda a lei. Quem acompanha meu trabalho jornalístico sabe o quanto lutei para desmontar o esquema de corrupção que funcionava na Petrobras, mas é preciso respeitar a lei para não colocar tudo a perder.
Por outro lado, Fabrício Queiroz, o operador do milagre da multiplicação das cédulas que é protegido pela família Bolsonaro, foi intimado pelo Ministério Público fluminense para depor no âmbito do rumoroso caso que tira o sono do presidente da República, mas se deu ao luxo de não atender a quatro intimações, motivo suficiente para “condução sob vara”. Se no caso de Lula a patuleia bolsonarista foi ao delírio, no caso de Fabrício ela se cala. É a tal teoria dos “dois pesos, duas medidas”.
No momento em que entra em polvorosa por causa de um pedido de Lula à Justiça, amparado na lei, e sua recusa em aceitar a consequente decisão parcial, a seita bolsonarista acaba por ressuscitar aquele a quem deveria dedicar o devido ostracismo. Mas não o faz porque depende das bizarrices do lulopetismo para alimentar o pensamento binário, tábua de salvação de um governo que por enquanto não tem salvação. E quando um governo precisa do espelho retrovisor para se manter, é porque a incompetência de seus integrantes é muito maior do que se imaginava.
Diferentemente do que alegam os picarescos defensores de Bolsonaro, a decisão de Lula de não ir ao velório do irmão reverberou muito mais do que eventual discurso (alguns falam em comício) no sepultamento. Contudo, explicar o óbvio a pessoas contaminadas pelo efeito manada não é tarefa das mais simples. Talvez seja missão impossível, pois abdução é algo irreversível.
Negar a Lula aquilo que a lei lhe garante como direito é transformar um condenado por corrupção e lavagem de dinheiro em mártir em questão de poucas horas. É elevar ao panteão dos injustiçados alguém que deveria ser esquecido por conta dos malfeitos. Não obstante, Lula não esperava que ao se posicionar contra sua ida ao velório de Vavá a força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba afirmaria que ele “não é um preso comum”. E a emenda ficou melhor do que o soneto. Resumindo, gostem ou não, no “país da piada pronta” a “direita é xucra”. E ponto final!
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.