Definitivamente, a sociedade brasileira está entorpecida diante da catarata de absurdos em que se transformou o governo de Jair Bolsonaro, que continua agindo na contramão dos messiânicos discursos de campanha.
A mais recente e estupefaciente novidade no âmbito do governo está relacionada à prisão, pela Polícia Federal, de quatro suspeitos de envolvimento na invasão dos celulares do ex-juiz e atual ministro Sérgio Moro e do procurador Deltan Dallagnol. A Operação Spoofing foi levada a cabo nesta terça-feira (23) e cumpriu onze mandados, sendo quatro de prisão e sete de busca e apreensão. Expedidos pelo juiz Vallisney de Souza Oliveira, da 10ª Vara Federal de Brasília, os mandados foram cumpridos nas cidades de São Paulo, Araraquara e Ribeirão Preto.
A investigação da PF foi deflagrada após o site The Intercept Brasil iniciar uma série de diálogos nada republicanos entre Moro e Dallagnol, sendo que muitos mostram o ativismo judicial que tomou conta das entranhas da Operação Lava-Jato.
Incensado erroneamente ao panteão dos heróis nacionais, Sérgio Muro caiu do pedestal quando ficou provado que sua atuação à frente das ações penais decorrentes da Lava-Jato ultrapassou os limites estabelecidos na lei. Quando o julgador interfere no processo acusatório, como comprovam as mensagens divulgadas pelo The Intercept, a ação penal deveria ser anulada. Como no Brasil a Justiça se pauta pelo clamor popular, não há na magistratura nacional, por enquanto um corajoso capaz de tal feito.
Considerando que o ministro Sérgio Moro está na condição de vítima, sua permanência no comando da pasta da Justiça é no mínimo suspeita, uma vez que a Polícia Federal está sob sua subordinação. Além disso, a Operação Spoofing foi deflagrada um dia após Moro reassumir o trabalho.
Fosse o Brasil um país razoavelmente sério, Sérgio Moro teria solicitado afastamento do cargo para que a PF pudesse agir com a necessária isenção. Não se trata de duvidar da atuação dos policiais envolvidos na investigação, mas é preciso ressuscitar o adágio popular sobre a segunda esposa do imperador Romano Júlio César. Segundo o dito, à mulher de César não basta ser honesta, mas parecer honesta.
A PF não divulgou detalhes da investigação e das prisões, mas causa estranheza a afirmação de os supostos hackers teriam invadido os celulares de Moro e Dallagnol. Tao logo o The Intercept divulgou a primeira tranche de mensagens, Moro admitiu que algumas informações contidas nos diálogos poderiam ser verdadeiras, mas o ministro não reconhecia a autenticidade dos diálogos. Essa afirmação aconteceu durante depoimento de Moro em comissão do Senado.
O ministro Sérgio Moro disse que apagara as mensagens trocadas com integrantes da força-tarefa da Lava-Jato porque “tem o péssimo hábito de comprar celulares baratos”. Em suma, só faltou o ministro afirmar que o peso do cachimbo é que faz a boca torta.
A empresa dona do Telegram, aplicativo de mensagens usado pelo ex-juiz e pelos procuradores da Lava-Jato em Curitiba, informou que as mensagens poderiam estar a salvo nos servidores caso Dallagnol não tivesse apagado os diálogos.
Se Moro compra celulares baratos e por isso tem o hábito de apagar mensagens, a PF não pode ter chegado aos suspeitos a partir de perícia no equipamento usado pelo ministro da Justiça. A esperança, portanto, repousava na possibilidade de Deltan Dallagnol ter preservado os diálogos cibernéticos.
Em 1º de julho p.p., a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal em Curitiba afirmou, por meio de nota, que como a PF e a Procuradoria-Geral da República (PGR) informaram que “as evidências dão conta de um ataque hacker criminoso sobre contas de aplicativos e não sobre o aparelho celular”, não haveria razão para periciar os aparelhos usados por Dallagnol e outros procuradores da Lava-Jato.
Na mesma nota, o MPF informou que os procuradores desativaram as contas do Telegram, tendo excluído inclusive o histórico de mensagens armazenado tanto no celular quanto em nuvem. “Houve reativação de contas para evitar sequestros de identidade virtual, o que não resgata o histórico de conversas excluídas”, afirmou a assessoria do MPF em Curitiba.
Ora, se Sérgio Moro apagou as mensagens que estavam armazenadas no celular e os procuradores adotaram procedimento idêntico, o que serviu de justificativa para não entregar os aparelhos para a necessária perícia, a investigação caiu no vazio. Principalmente porque o Telegram afirmou que a recuperação das mensagens dependia da existência dos diálogos em pelo menos um dos celulares usados na troca de informações entre o então juiz e os procuradores.
Além disso, tomando por válida a afirmação de que a PF e a PGR informaram que a suposta ação dos hackers ocorreu nos servidores do Telegram, não nos celulares de Moro e Dallagnol, dúvidas precisam ser esclarecidas pelos investigadores, pois apurar um caso como esse exige acima de tudo coerência e cuidado redobrado.
Isso posto, resta concluir que muitas peças não se encaixam no quebra-cabeça em que se transformou a mencionada investigação. Para um governo que é uma usina de destampatórios, toda cortina de fumaça é sempre bem-vinda.
Não se trata de defender o crime de violação de privacidade, mas de exigir doses rasas de lógica e bom senso no escopo da investigação. Sendo assim, o único crime comprovado, mas não admitido pelos autores, é o de desrespeito à lei por parte das autoridades.
Quando uma sociedade defende a violação da lei como forma de abrir caminho para o justiçamento, o Estado Democrático de Direito está sob grave ameaça. Se a investigação que levou à prisão dos quatro suspeitos for adotada como padrão, muitos serão condenados com base no “achismo”. É importante ressaltar que as transgressões cometidas por algumas autoridades da Lava-Jato tinham como pano de fundo um projeto de poder.
É preciso cautela ao apontar suspeitos como culpados, pois a condenação no tribunal da opinião pública é irreversível. Mirem-se no exemplo dos casos do “Bar Bodega” e da “Escola Base”, em São Paulo. Em ambos, os que foram inicialmente apresentados pelas autoridades como culpados eram inocentes.