(*) Ucho Haddad
Cíclica, a história se repete de tempos em tempos, mesmo que em cena surjam apasquinados para protagonizar absurdos pretéritos. Quando Jair Bolsonaro lançou-se como candidato à Presidência, afirmei, como continuo afirmando, ser ele desprovido de competência e estofo para ocupar cargo de tamanha relevância e responsabilidade. A patuleia que o incensa diuturnamente insiste em não enxergar o óbvio e ataca de forma torpe aqueles que o criticam.
Bolsonaro fala em democracia com a mesma facilidade com que devora pães recheados com leite condensado, mas sua essência autoritária, escandalosamente visceral, escorre sem parar de suas entranhas, não deixando dúvidas a respeito da ameaça que ronda a democracia e o Estado de Direito.
Rascunho pífio de ditador, Bolsonaro não aceita o contraditório e acredita ter sido eleito dono do Brasil, condição que passa ao largo da dura realidade que brotou das urnas. Na esteira do escândalo que tem na proa o ministro Sérgio Moro, o presidente da República corre contra o tempo para salvar a reputação de alguém que até recentemente era o esteio de um governo adepto da fanfarronice e da estupidez.
Fermentando a todo instante uma revanche ideológica que parece não ter fim, Bolsonaro se vê a reboque da lambança que a divulgação dos diálogos entre Moro e Deltan Dallagnol começa a provocar na estrutura do governo. Por mais que uma parcela da sociedade insista em bajular um transgressor da lei, no caso Sérgio Moro, a situação do ex-juiz da Lava-Jato entrou no torvelinho da deterioração.
Enquanto a porção radical e bizarra da sociedade aposta na violação da lei como receita para combater a corrupção, Moro deve se preparar para enfrentar dias ainda mais difíceis. As últimas medidas adotadas pelo ministro da Justiça demonstram sua preocupação com o futuro, pois é impossível endossar conluios entre aqueles que denunciam e os que julgam.
Longe de defender corruptos, até porque há décadas os denuncio sem ater-me à cangalha ideológica, apenas cobro o estrito cumprimento da lei para que criminosos não sejam transformados em vítimas. Além disso, é preciso defender com unhas e dentes o Estado Democrático de Direito, sob pena de mais adiante sermos as próximas vítimas de um tribunal pretoriano que começa a ganhar corpo com a aquiescência de parte da população.
A recentes decisões de Sérgio Moro, que busca salvar a própria pele, o transforma em versão contemporânea e mal-ajambrada de Gregório Fortunato, o “Anjo Negro” do ditador Getúlio Vargas. Assim como Fortunato, o ministro da Justiça não mede consequências para blindar a fama de herói e impedir o desmoronamento de um presidente que foi eleito à sombra do populismo tosco e do discurso de ódio.
Como se sabe, Bolsonaro conquistou o direito de subir a rampa do Palácio do Planalto não porque muitos eleitores o viam como o candidato ideal, mas porque representava um voto contra o PT. Isso posto, cabe ressaltar que nem sempre quem vota contra alguém está votando a favor de algo. Que ninguém venha com o discurso boquirroto de que o simples fato de ter alijado o PT do poder é mais do que suficiente, já que não se vive de devaneios político-ideológicos.
Comparando distintos períodos da história verde-loura, até porque a política é ciclotímica e nada inovadora, o PT está para Jair Bolsonaro, assim como Carlos Lacerda estava para Getúlio Vargas. Lacerda foi um estorvo considerável na vida de Vargas, a ponto de ter sido vítima de um atentado cujo mandante teria sido o capataz de primeira hora do caudilho populista.
O escândalo dos diálogos entre o ex-juiz e o coordenador da força-tarefa da Lava-Jato atinge o principal pilar de sustentação do governo, sem o qual o discurso de Bolsonaro esfarela em pouco tempo. Atentam contra a democracia as recentes decisões e declarações de Bolsonaro e Moro, que, ao que parece, aparentam preocupação com os desdobramentos do imbróglio que pode libertar corruptos e anular condenações.
Ciente de que perdeu a pompa e circunstância que a magistratura proporciona, Moro recorre ao faz de conta para fingir que ainda tem o poder de outrora. O simples fato de ter acesso ao inquérito da Polícia Federal que apura os ataques aos celulares de autoridades faz de Moro uma reedição mambembe de Gregório Fortunato, que não media esforços para salvar a própria pele e a de Getúlio. Como se não bastasse, o ministro da Justiça afirmou que parte do material apreendido com os hackers será destruída, decisão que cabe somente à Justiça, não a Moro.
No momento em que editou portaria que permite a deportação sumária de “pessoas perigosas” e que representem ameaça à segurança do País, o ministro da Justiça escreveu o capítulo que sucedeu o anúncio de que os celulares do presidente da República teriam sido invadidos pelos criminosos cibernéticos. A partir deste ponto, o ministro passou a acreditar que bastava provar a ligação entre os hackers e o jornalista Glenn Greenwald para implodir o episódio burlesco que lhe tira o sono, uma vez que sendo o presidente uma das vítimas o caso será tratado como terrorismo e julgado sob o manto da Lei de Segurança Nacional.
O que Sérgio Moro talvez não saiba é que a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XIV, garante que é “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. De tal modo, a tentativa de intimidação do ministro saiu pela culatra, pois mesmo com a eventual comprovação por parte da PF de que os hackers são a fonte do jornalista, restará muito barulho e pouca ação. Além disso, Glenn Greenwald é casado com um brasileiro e adotou duas crianças nascidas no País.
Demagogo de quinta e acostumado a discursos eivados pela ignorância, como um todo, Bolsonaro voltou a destilar sua intolerância, mais precisamente a homofobia que não consegue esconder, apesar do hercúleo esforço que faz para se apresentar à opinião pública como politicamente correto.
Neste sábado, 27 de julho, o presidente da República afirmou que Greenwald será condenado à prisão e cumprirá a pena no Brasil. Pelo que se sabe, o editor do The Intercept Brasil não cometeu crime algum capaz de justificar eventual ação penal. Como ninguém pode ser preso sem o devido processo legal e o amplo direito de defesa, a declaração do presidente da República vai para o bestiário oficial. Que Bolsonaro desconhece o conteúdo da Carta Magna é ponto pacífico, mas a ignorância jurídica de Moro que ora se faz presente chega a ser monumental.
“Pelo que o Moro falou comigo, ele tem carta branca, né, eu teria feito um decreto. Tem que botar pra fora mesmo, quem não presta tem mandar embora. Não tem nada a ver com o caso desse Green-não-sei-o-quê aí (Glenn Greenwald), nada a ver com o caso dele. Tanto é que não se encaixa nessa portaria o crime que ele está cometendo. Até porque ele é casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro, pra evitar um problema desse, né, casa com outro malandro ou não casa, ou adota criança no Brasil”, declarou Bolsonaro.
O pendão totalitarista que Jair Bolsonaro empunha é velho conhecido dos brasileiros de bem, mas uma parcela da sociedade entende que a democracia pode ser mandada às favas, desde que seja para satisfazer o desejo de um ditadorzinho barato, típico dessas repúblicas bananeiras que se esparramam pelo globo.
Bolsonaro e Getúlio têm pontos em comum, exceto a ignorância e a inabilidade política do primeiro, mas não há dúvida de que Moro está querendo fazer das reportagens do Intercept uma espécie de versão cibernética da Rua Toneleros, em Copacabana, onde Lacerda foi vítima de emboscada. Gregório Fortunato, o autêntico, que o diga. Resta saber quem fará o papel do major Rubens Florentino Vaz, já que o Maneco Vargas da atualidade todo brasileiro esclarecido sabe quem é.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, escritor, poeta, palestrante e fotógrafo por devoção.
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