O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, derrubou nesta quinta-feira (9) a decisão da Justiça do Rio de Janeiro que determinou a censura do “Especial de Natal Porta dos Fundos: A Primeira Tentação de Cristo”.
A decisão de Toffoli atendeu a um pedido da plataforma de streaming Netflix, que mais cedo apresentou uma reclamação ao Supremo contra a liminar de um desembargador Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que havia ordenado que o filme de 46 minutos fosse retirado do ar.
“Não é de se supor, contudo, que uma sátira humorística tenha o condão de abalar valores da fé cristã, cuja existência retrocede há mais de 2 (dois) mil anos, estando insculpida na crença da maioria dos cidadãos brasileiros”, escreveu Toffoli em sua decisão.
A censura havia sido imposta atendendo a um pedido de uma associação católica conservadora.
Ao acionar o STF, a Netflix argumentou que “a decisão proferida pelo TJ-RJ tem efeito equivalente ao da bomba utilizada no atentado terrorista à sede do Porta dos Fundos: silencia por meio do medo e da intimidação”. A empresa também chama a decisão de censura.
“A verdade é que a censura, quando aplicada, gera prejuízos e danos irreparáveis. Ela inibe. Embaraça. Silencia e esfria a produção artística”, disse a empresa.
O grupo Porta dos Fundos também se manifestou contra a decisão do TJ-RJ, afirmando ser “contra qualquer ato de censura, violência, ilegalidade, autoritarismo e tudo aquilo que não esperávamos mais ter de repudiar em pleno 2020”.
Esse foi o segundo caso de censura imposta pela Justiça fluminense em menos de seis meses, o que causa preocupação. Em setembro, o próprio presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), desembargador Claudio de Mello Tavares, chancelou um plano do prefeito Marcello Crivella para apreender na Bienal do Livro exemplares de uma HQ que mostrava um beijo gay.
A decisão de Tavares também acabou sendo derrubada por Dias Toffoli. Na ocasião, o presidente do STF disse que o TJ-RJ havia violado “a ordem jurídica e a ordem pública” e que “o regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias”.
Censura ao Porta dos Fundos
Na quarta-feira ((8), em decisão liminar, o desembargador Benedicto Abicair, da 6ª Câmara Cível, determinou que o especial de Natal do grupo fosse retirado do ar pela Netflix para “acalmar os ânimos”.
“Por todo o exposto, se me aparenta, portanto, mais adequado e benéfico, não só para a comunidade cristã, mas para a sociedade brasileira, majoritariamente cristã, até que se julgue o mérito do Agravo, recorrer-se à cautela, para acalmar ânimos, pelo que concedo a liminar na forma requerida”, escreveu o desembargador Abicair na decisão.
A decisão atendeu a um pedido do Centro Dom Bosco de Fé e Cultura, um grupo católico conservador. O desembargador ainda escreveu que o “direito à liberdade de expressão, imprensa e artística não é absoluto”.
Abicair, no entanto, teve posição oposta em 2017 quando votou em um processo que envolvia acusações de homofobia contra o então deputado federal Jair Bolsonaro. À época, Bolsonaro era réu por ter afirmando na TV que não teria filhos gays porque os dele “tiveram boa educação”. O atual presidente acabou sendo condenado em primeira instância, mas recorreu ao TJ-RJ. Abicair foi um dos desembargadores que julgou o caso. Ele votou a favor do recurso.
“Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja. Gostar ou não gostar. Querer ou não querer, aceitar ou não aceitar. Tudo é direito de cada cidadão, desde que não infrinja dispositivo constitucional ou legal. Não vislumbro a existência de discriminação, de qualquer natureza, mas, sim, aplicação da livre manifestação de opiniões diversas”, destacou o desembargador na ocasião. Abicair, no entanto, foi voto vencido e Bolsonaro foi condenado novamente.
O especial do Porta dos Fundos está disponível na Netflix desde 3 de dezembro. No filme, os humoristas do Porta dos Fundos satirizam Jesus e Maria. O fundador do cristianismo é retratado como um homossexual. Maria, como adúltera e usuária de drogas.
O fato de Jesus ter sido retratado como gay despertou a ira de vários grupos religiosos e militantes de extrema direita. O pedido do Centro Dom Bosco para que o especial fosse retirado já havia sido negado por um juiz em dezembro, mas chegou a receber o endosso de uma promotora do Rio.
Na ocasião, a promotora Barbara Salomão Spier argumentou que “fazer troça aos fundamentos da fé cristã, tão cara a grande parte da população brasileira, às vésperas de uma das principais datas do cristianismo (Natal), não se sustenta ao argumento da liberdade de expressão”.
Liberdade de expressão
Em que pese o fato de o UCHO.INFO entender que questões relacionadas à fé não devem ser alvo de ataques e ofensas de qualquer gênero, é inaceitável que o direito constitucional à liberdade de expressão seja violado apenas porque uma parcela da sociedade tenta impor à nação a própria maneira de viver e pensar.
De igual modo, a Justiça, atualmente, está a tomar decisões que ferem de morte o Estado de Direito, pois quando temas relacionados a religiões de matrizes africanas são alvo de deboches e outras manifestações depreciativas não se vê decisões de natureza semelhante. Como a democracia pressupõe isonomia de tratamento e a Constituição estabelece que o Estado é laico, vale recordar o adágio popular “o pau que bate em Chico, bate em Francisco”.
O silêncio obsequioso de Bolsonaro e Moro
Causou espécie a forma como o presidente Jair Bolsonaro e o ministro Sérgio Moro se comportaram diante do imbróglio que tem a produtora Porta dos Fundos como centro da discórdia. Desde o ataque à produtora, Bolsonaro e Moro, que tanto falam em combater o terrorismo, sequer balbuciaram uma palavra contra a ação criminosa comandada pelo agora fugitivo Eduardo Fauzi, que está com a prisão decretada e na lista de difusão vermelha da Interpol.
Para quem enche os pulmões para falar em democracia, mesmo que essa seja desrespeitada por ambos de forma recorrente, Bolsonaro e Moro deveriam ter se manifestado contra a censura imposta à produtora, já que nada nem ninguém está acima da Carta Magna. Se o presidente da República e o ministro da Justiça creem que podem tudo apenas porque chegaram ao poder, que se preparem, pois quando a opinião pública se cansar dessa ópera bufa será tarde demais.