(*) Ucho Haddad –
Do que vive a imprensa? Os incautos certamente dirão que a imprensa vive de jornalismo, mas a realidade é lamentavelmente diferente. A imprensa brasileira, como a de qualquer outra parte do planeta, vive de dinheiro, muito dinheiro. E o caminho para essa incansável cornucópia são as manchetes, os furos de reportagens, as mentiras travestidas de verdade.
Desde as primeiras notícias sobre o acidente com o Airbus da Air France, que na noite do último domingo (31 de maio) desapareceu sobre o Atlântico, pensei inúmeras vezes se deveria ou não escrever a respeito do papel da imprensa, sempre despudorada e ultrajante diante de uma tragédia.
A exemplo do que ocorreu logo após o acidente com o avião da Tam, em julho de 2007, quando notícias supostamente exclusivas passaram a ser disputadas minuto a minuto pelos veículos de comunicação, o triste evento do último domingo provará ao mundo que a imprensa definitivamente desconhece o que é ética.
Que o ser humano é inimaginavelmente macabro diante do calvário alheio todos sabem, mas cabe à imprensa nortear o comportamento social a partir de notícias balizadas e de um comportamento irrepreensível em termos éticos. Para esses jornalistas, sempre impávidos e soberbos, o que mais importa é a audiência, a quantidade de exemplares vendidos nas bancas, o número de acessos nos sítios eletrônicos. O mais importante, diga-se de passagem, é o tilintar constante das máquinas registradoras dos respectivos departamentos comerciais. Não importa se na outra ponta tem alguém sofrendo, pois não demorará muito para os que se enfastiaram com a audiência promovam ações camufladas ditas de interesse social. E o mundo rapidamente esquecerá das barbáries midiáticas.
Embalados pelas inúmeras interrogações que ainda emolduram o acidente, as quais poderão ser perenes, os veículos da imprensa brasileira trataram de montar rapidamente seus circos informativos, levando aos leitores e telespectadores desencontradas conjecturas, que só serviram para aumentar a dor daqueles que sofrem diante da perda de alguém querido.
Especialistas nos variados assuntos que envolvem a aviação entupiram estúdios e redações, sempre convidados a palpitar. A maioria não soube esclarecer coisa alguma, mas suposições e ilações serviram para pontuar alguns apagados currículos. Colocar a cara na telinha e não fechar as portas nos veículos que adotam esse tipo de conduta era mais importante do que pensar em como poupar a dor dos familiares e amigos das vítimas.
Como pensar no próximo não rende um tostão sequer, o melhor negócio, dourado como sempre, é transformar a dor alheia em uma incansável máquina caça-níqueis. Entre a informação e o vilipendio da dignidade de um sofredor há uma linha não tão tênue, que deve ser respeitada em todas as condições.
Quando deparamo-nos com um artigo sobre medicina, o que devemos esperar é que o escriba tenha conhecimento mínimo da matéria. Com isso não quero afirmar que para noticiar um acidente aéreo é preciso um jornalista que tenha passado por situação semelhante. O que não se pode admitir é que pessoas em desespero sejam incomodadas por câmeras e microfones, apenas porque esse ou aquele diretor de redação precisa manter o emprego.
Esses falsos paladinos do jornalismo nacional creem que as informações esclarecem, quando na verdade confundem e principalmente turbinam a dor. E faço tal afirmação sem medo de errar e com profundo conhecimento de causa. Morrer é uma consequência natural da vida, mas essa naturalidade do fato só existe quando morre o vizinho. Quando a morte acontece de forma trágica e coletiva, como aconteceu com os passageiros do voo AF 447, a dor aumenta por conta das suposições incontroláveis que surgem a cada segundo.
Para que não pairem dúvidas sobre o que ora discorro, tomo como exemplo a possibilidade, de chofre descartada pelos técnicos, de o avião francês ter sido atingido por um raio. Ora, se essa informação é improcedente, não há razão para levá-la ao conhecimento público, pois os parentes das vítimas podem concluir que os passageiros foram eletrocutados. O que por enquanto está no campo das inverdades. Mas é nessa direção que a mente humana caminha, buscando inconscientemente o pior para aumentar a própria dor, uma forma reinventada de auto-penitência pela perda.
Não bastasse a insanidade desrespeitosa da imprensa, o governo federal se apressou para não perder esse irresponsável circo mórbido. A bordo de um festival de besteiras de fazer inveja ao “febeapá” do genial Stanislaw Ponte Preta, Lula da Silva, messiânico e tresloucado como sempre, disse que “um país que pode achar petróleo a 6 mil metros de profundidade pode achar um avião a 2 mil metros”. Bobagem descomunal, pois o avião, se encontrado, estará aos pedaços. Ou seja, não se deve brincar com o sentimento alheio, alimentando esperanças que frequentam o mundo do impossível.
Mas o pior estava por vir. O ministro da Defesa, o falastrão Nelson Jobim, atratou de dar pinceladas de terror em um cenário marcado pela tristeza. Disse o ministro que os corpos dos passageiros podem ter sido mutilados na cintura ou arremessados ainda no ar a quilômetros de distância. Ora, alguém que não conseguiu aumentar a distância entre os bancos das aeronaves brasileiras – foi o que o ministro prometeu ao assumir a pasta – não pode, ao posar de dono da verdade, achincalhar a dignidade daqueles que sofrem por conta do acidente aéreo.
Essa morbidade do ser humano é que alimenta cada vez mais o viés desumano não só da imprensa, mas também de muitos segmentos da sociedade. Buscar no caos alheio um alento para o próprio calvário é que fez – como ainda faz – de Pompéia, na Itália, um importante e cobiçado centro de turismo. Lá, a tragédia petrificada serve de fonte de reconforto aos que diuturnamente transformam a própria existência em um sofrimento sem fim.
Lavas vulcânicas à parte, a imprensa e a política, sob a ótica financista, são lamentáveis invenções do homem.