(*) Karina Trevizan
Com a imagem mais que arranhada depois das sucessivas irregularidades com a cota de passagens e com a bem “flexível”, por assim dizer, verba indenizatória dos deputados, a Câmara tenta uma medida que solucione, ou pelo menos aparente solucionar, os consecutivos e escandalosos casos de mau uso dessa verba. A Mesa Diretora da Casa propôs, na última quinta-feira, a criação do “cotão”, que seria nada mais que uma unificação de algumas verbas recebidas por cada um dos 513 parlamentares.
Entretanto, o projeto, astutamente, não é a junção de todas as verbas. O polêmico auxílio moradia de R$ 3 mil, por exemplo, permanece intocado, assim como os R$ 60 mil destinados à contratação de funcionários. O que será condensado no “cotão”, que variaria entre R$ 25 mil e R$ 30 mil, seriam a verba indenizatória, que atualmente é de R$ 15 mil, a cota para correio de R$ 4,2 mil e a pivô do falatório, a cota de passagens, que, dependendo do estado de cada parlamentar, alterna-se entre R$ 3,7 mil e R$ 14,9 mil.
Se tomarmos como exemplo, contudo, o caso de um deputado que resida em um estado que faça com que tenha direito à maior cota para bilhetes aéreos, chegaremos a um desarranjo numérico no mínimo suspeito. Somados, os direitos indenizatórios desse parlamentar chegariam ao montante de R$ 39,1 mil, ultrapassando, portanto, o limite do “cotão”. Como compensaria esse deputado os R$ 9,1 mil de diferença? Justificar com o proposto aumento salarial para R$ 24,5 mil não é válido, sendo que a diferença salarial é de apenas (sic) R$ 8 mil. Não é preciso ser especialista na rotina dos corredores do Congresso para prever que esses aparentemente inofensivos R$ 1,1 mil serão mais que compensados, de uma forma ou de outra.
Valores – ainda que abusivos – à parte, a própria existência de certos privilégios já merecem por si só questionamentos dos mais insurgentes, a começar pelo já citado benefício de auxílio moradia. Se existem em Brasília 513 deputados e 432 apartamentos funcionais destinados à Câmara, os 81 parlamentares desacomodados deveriam custar aos cofres públicos R$ 2,43 milhões ao ano, considerando que passem 10 meses instalados na capital brasileira. Como explicar então os R$ 13 milhões que a Câmara desembolsa todo ano para esse benefício? E quanto aos R$ 150 milhões que serão gastos em uma reforma para aumentar o número de apartamentos para 528? Se não existissem os apartamentos funcionais, o gasto anual com o auxílio moradia de R$ 3 mil por deputado seria de R$ 15,4 milhões ao ano no total, com todos os integrantes da Casa. Este site entrou em contato com um hotel 4 estrelas em Brasília e calculou o preço das diárias para 513 hóspedes durante 3 dias por semana em um período de 10 meses. O valor total, sem desconto, chegou à soma de R$ 11,76 milhões. Definitivamente, não há como entender a lógica do uso do dinheiro da Câmara com acomodação.
E quanto ao cabide de empregos pagos com os R$ 60 mil destinados aos funcionários de gabinete? E quanto ao plano de saúde ilimitado que dá aos parlamentares o direito de usufruírem das comodidades dos hospitais particulares do mais alto padrão? E quanto à tal verba indenizatória usada para os mais insanos fins por aqueles que deveriam ser os representantes do povo? Um trabalhador que ganha – com mérito infinitamente maior que o de muitos integrantes do poder público – um salário mínimo de R$ 465,00, precisaria trabalhar um ano inteiro só para ganhar o que os deputados recebem como “cota de impressão”, utilizada para divulgar seus folhetos impressos a 4 cores ou distribuir numerosos cartões de natal pelas redações da imprensa. Um trabalhador representa então, para um deputado, uma impressora à disposição.
Agora, distribuir cartões de crédito para os deputados e chamar a atitude de projeto “cotão” não tem a intenção de interromper o uso torto da verba indenizatória. A apresentação de notas fiscais apenas continuaria a já conhecida chuva de notas frias, e o controle on-line não inibiria os perversos acordos entre um deputado e um suposto prestador de serviços. Mas, por outro lado, alguns benefícios também traria. Um deles é que a Câmara poderia gabar-se de tentar tomar medidas concretas para cercear a corrupção. Outro é que os deputados aumentariam seu salário sob o paradoxo de poder justificar a injustiça. Mas para nós, meros espectadores do circo público, permaneceria a audácia de termos nossos impostos devidamente cobrados para sustentar as peripécias feitas com o dinheiro do contribuinte.