(*) Ucho Haddad –
Há no Brasil alguns patrimônios nacionais, mas entre os mais festejados, em especial pelos homens, a bunda tem a preferência da extensa maioria. Se bem que as mulheres, de uns tempos para cá, resolveram colocar à luz do dia os seus fetiches. E há algumas que escolhem o parceiro pela bunda, não importando o que o cidadão tem no cérebro. Paciência, pois cada uma tem o “bundão” que merece.
Na manhã desta ensolarada e preguiçosa sexta-feira, 29 de julho, compromissos profissionais me levaram a encarar o trânsito paulistano, que com a proximidade do final das férias retomou o viés da complicação. Sendo assim, ficar parado nos cruzamentos voltou a ser uma quase obrigação. Um dos lentos semáforos encravados no caminho me deu a chance de contemplar os pedestres e os que se esgueiravam em busca de nesgas de sol. Acompanhar o cotidiano é algo que faço com prazer e persistência, pois nele encontro explicações para a vida e fontes de inspiração para textos que fogem da política. Tudo se movia com a lentidão típica de uma sexta-feira, até que uma bunda invadiu o cenário.
Não era uma bunda qualquer, mas também não era um “bundão”. Não era uma bunda do tipo tanajura, nem daquela que lembra um violão. Mas também não era uma bunda caída e desajeitada. Era uma bunda. Uma bunda apressada. Comprimida por uma calça jeans cuja justeza só perde para a do Criador, a bunda percorria as calçadas do bairro com rapidez. Ciclotímica e teimosa, a bunda que interrompeu a mesmice da sexta-feira grafava no ar movimentos circulares, tamanha era a velocidade das pernas que a arrastavam. O trânsito estava parado, mas a bunda não.
Estar no engarrafamento naquele momento foi interessante, pois pude perceber o comportamento das pessoas diante da bunda. É verdade que cada um tem a sua preferência em termos de bunda, mas a da manhã desta sexta com certeza foi unanimidade. No posto de gasolina, o frentista, com a mangueira na mão (de combustível, claro), parou para ver a bunda. O agente de trânsito, com caneta e talão em punho, esqueceu-se das multas. Disfarçadamente, por trás dos óculos escuros, seguiu aquela bunda que fez a alegria de alguns quarteirões.
No meu trajeto acompanhei a bunda alcançando a quadra da igreja. Logo imaginei que naquela porção casta da rua ninguém ousaria contemplar a bunda de forma acintosa. Pois me dei mal. Depois de confessar seus pecados, um homem, com semblante de carola, logo conquistou o direito de voltar ao confessionário. Fitou a bunda como se fosse a senha para entrar no céu. Sempre lembrando que cada um idealiza o próprio céu ao seu modo. Há quem diga que os terroristas muçulmanos (o que não significa que todo muçulmano seja terrorista) ganham os céus e quarenta virgens depois de um ato de bravura insana, mas aquele senhor de ar bem comportado estava disposto a abrir mão das virgens e cometer qualquer atentado por causa daquela bunda.
A bunda avançou, ultrapassou um dos mais movimentados cruzamentos da Pauliceia Desvairada. Naquele momento pensei: enfim a bunda terá sossego, não mais será alvo de soslaios canibais. De novo me dei mal. No caminho havia uma padaria e, em seguida, um boteco. E como sempre acontece, a bunda se transformou no cardápio do mequetrefe botequim. Quem estava do lado de fora interrompeu o beberico para ver a bunda. Quem estava dentro saiu para ver aquela lordose ambulante. Enfim, todos pararam para ver a bunda passar, pois lá estavam à toa na vida. Foi então que surgiu no caminho da bunda uma banca de jornal. E as notícias do dia se renderam ao “derrière” anônimo.
A dona da bunda parecia não se importar com os olhares espios, e outros nem tanto, até que um ortodoxo e paramentado seguidor do Rei Salomão atravessa a sua trilha. Por causa daquela cena típica de filme de dedicação religiosa logo imaginei que a bunda em questão estava a salvo. Mas aquele homem de fé mostrou que a crença no Criador também pode ser manifestada através da admiração pelas criaturas. E ele fez o que tantos outros fizeram. Secou a bunda.
Ao longo do caminho, repleto de comentários machistas, suponho eu, muitas mulheres torceram o nariz. Seja para a bunda, seja para aqueles que a admiravam. Algumas por serem pudicas, outras por mera e corrosiva inveja. Logo conclui que aquelas mulheres eram “desbundadas”, se não fisicamente, pelo menos emocionalmente.
O trânsito andou, fui obrigado a virar à direita e a bunda seguiu em frente. Fiquei imaginando quais capítulos surgiriam nessa fábula “bundesca” que interrompeu a manhã. Não demorou muito e lembrei-me da música “Pagu”, de autoria das competentíssimas Rita Lee e Zélia Duncan.
Essa lembrança musical tem uma explicação. Uma não, várias. À porta da igreja e diante do ortodoxo discípulo salomônico, a tal bunda parecia mandar um recado: “mexo, remexo na inquisição”.
Pela velocidade com que percorria as calçadas, estava claro que aquela bunda é “pau prá toda obra”, como também “deu asas à cobra”, não à minha, mas às daqueles insurgentes senhores que se contorceram para acompanhar seu movimento insidioso.
A determinação dos passos que movimentavam a bunda remetia àquele trecho de “Pagu” que diz “minha força não é bruta”. Sobre a dona da bunda nada sei. Por isso invoco mais uma vez a música de Rita e Zélia: “Não sou freira / Nem sou puta…”
Mas a semana termina com a bunda em voga, pois os prazeres de glúteos famosos atropelaram o silêncio da alcova. Sandy, a outrora “boa menina” de voz doce, que não faz muito tempo virou “Devassa”, teria dito à revista Playboy que “é possível ter prazer anal”.
Tudo muito bem, pois entre quatro paredes, ou fora delas, cada um realiza seus desejos como bem quiser. Até porque, como cantam as meninas de “Pagu”, “nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda”.
(*) Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, cronista esportivo, escritor e poeta.