(*) Ucho Haddad –
Há na vida situações inenarráveis. Algumas alegres, outras tristes. Todas boas, sem dúvida, pois como sempre digo e escrevo, repetindo sem cansar, só os tropeços e dificuldades me fizeram crescer e melhorar. Não se trata de conformismo diante da sequência dos fatos, mas de encarar a vida como ela se apresenta. E do menor movimento tirar uma lição diferente e positiva.
Entre os tantos momentos que vivenciei nesses mais de cinquenta anos, alguns deles marcaram a minha história. Transformaram-se em páginas importantes do livro da vida, daquelas que não se vira e não se rasga. Apenas devemos deixá-las por perto, em lugar de fácil acesso, pois muitas vezes servem como cartilha do amanhã. Um telefonema, em 26 de outubro de 1984, me fez ver o presente e o futuro de forma distinta. Do outro lado da linha estava alguém desconhecido e desesperado anunciando a morte de João Francisco, meu pai, à época um jovem que não tinha chegado aos cinquenta. Literalmente genial – foi assim que o MEC o classificou em três ocasiões – João foi um exemplo que só se revelou com a própria ausência. Ele precisou sair de cena para que aquilo que para mim era incompreensível e inaceitável se transformasse no foco dos meus passos. Não que quisesse imitá-lo, longe disso, mas, sim, seguir o exemplo deixado de maneira tão difícil e dolorosa.
As semelhanças físicas começaram a brotar de tal forma, que ao caminhar na rua na condição de ilustre desconhecido passei a ser identificado como seu filho. Diversas foram as vezes em que ouvi expressões de espanto positivo por conta das nossas semelhanças. No centro velho da cidade de São Paulo, em um dos muitos cafés que recheiam o entorno da Praça da Sé, ouvi comentários diversos sobre como éramos parecidos. Naquele momento percebi que tinha pela frente uma responsabilidade maior, pois de nada adiantaria ser apenas filho, pois me confundiriam como sendo a reticência de alguém que encantou a muitos com o silêncio e o raciocínio veloz. Foi então que decidi me dedicar ainda mais a tudo o que fazia, pois era preciso superá-lo. Ser apenas filho representaria pouco para mim, mas também, do outro lado da vida – se é que isso de fato existe –, para aquele que até hoje me serve de exemplo.
O caminho não foi fácil e simples, mas o desafio como sempre me deu ânimo para continuar nessa toada sem fim. Segui levando seus duros ensinamentos como o aboio que empurra a manada pelas pradarias. Por sermos iguais, não só fisicamente, tivemos embates memoráveis. Pensávamos na mesma direção, mas o conflito de gerações muitas vezes nos afastou. Poucos foram os momentos que dividimos, mas a intensidade compensou a escassez. E quando me refiro à intensidade não significa que os encontros foram longevos, duradouros.
Certa vez, circulando pelo centro paulistano, deparei-me com João Francisco e seu inseparável cachimbo. Dono de olhos expressivos, que naquela hora ganharam brilho extra, ele me pediu alguns trocados, pois sua relação com o vil metal sempre foi desprovida de obsessão. Andava pela rua sem lenço e sem documento. E sem dinheiro também. Quis saber o que faria com os tostões que pedira. Como se menino travesso fosse, João me respondeu que compraria dois pães de queijo. Sua felicidade plena estava não no bolso pesado, mas na expansividade silenciosa da alma. Com o avanço do tempo incorporei esse ensinamento.
Dias mais tarde, antes de ele se despedir da vida, nos encontramos novamente e por acaso no centro de São Paulo, quando tentei devolver-lhe uma caneta tinteiro. Rapidamente ele respondeu que gostaria que aquela caneta ficasse comigo para sempre. Juntos, fomos almoçar em um restaurante fincado nas costas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, algo que raramente aconteceu no nosso convívio. Parecia que ele estava se despedindo. Naquele dia ele me surpreendeu ao dizer que retornaria de uma viagem a tempo do meu aniversário. Tal afirmação me deixou perplexo, pois ele não se incomodava com isso. Na verdade, esqueceu várias vezes o próprio aniversário, assim como o meu. Despedimo-nos. Ele retornou aos afazeres de advogado e eu, a empunhar a pena. Enquanto escrevia naquela tarde não consegui me desvencilhar do detalhe inusitado que martelava o pensamento.
Selamos naquele dia uma espécie de parceria eterna. Silenciosa, sem palavras específicas, mas clara para ambos. Esse pacto contou com a ajuda da forma como ele se despediu da vida. Sem poder vê-lo em seu último momento, fui obrigado a me encher de coragem para buscá-lo como carga no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Continuei com a imagem de alguém que partiu sem avisar, mas que antes disso a mim deu diversos “tchaus” em poucas horas. Homem de palavra, ele cumpriu o que prometera. Voltou exatamente no dia do meu aniversário. Lamentavelmente o fez já sem vida.
Humilde por excelência, João foi um mestre na arte de existir. Sem passar incólume pelo cenário da vida, usou a simplicidade para desafiar os donos do poder. Afagava os mendigos, ao mesmo tempo em que era cortejado por políticos e estadistas. Circulou pelo mundo, mas jamais abandonou a coerência que marcou sua trajetória. Responsável por enrolar a lona do circo de sua cidade, João acreditava que a gargalhada de muitos resultava da seriedade de alguns. Como engraxate que fora na infância, ensinou-me que o sucesso de alguém vez por outra está no brilho do sapato alheio.
Sempre marcada pela confiança recíproca, nossa relação de amizade transcendeu o binômio pai-filho. Tanto é assim, que não me lembro de tê-lo chamado de pai. Era importante e simplesmente João. Sob o viés técnico sou órfão de pai, mas não posso dizer que sou um maior abandonado. Sou órfão de pai, sim, mas orgulhoso, assim como tantos pelo mundo afora também o são. Se a mim João serviu de exemplo, com certeza eu não o decepcionei, mesmo tendo o incógnito entre nós.
Feliz Dia do João pra você, pois o meu João continua sendo o melhor espelho que poderia ter encontrado no caminho.