Direitos dos outros – Há mais de 40 anos, o médico clínico e psicoterapeuta João Augusto Figueiró dedica-se ao estudo, ensino e pesquisa das relações entre o cérebro, a mente e suas relações com a cultura e a sociedade. Figueiró afirmou que a corrupção é um tipo de adoecimento social, relativo aos valores éticos que são consensualmente aceitos pela sociedade.
“Temos que pensar que além da saúde física e mental, que habitualmente consagramos nas definições, poderíamos incluir, também, a saúde social. Dessa forma, o conceito compreenderia também o respeito às normas, às leis e aos regimentos, ou seja, aos ritos que a sociedade estabelece”, explica nesta entrevista concedida à Dyelle Menezes, do “Contas Abertas”.
Figueiró foi responsável pelas primeiras ações que trouxeram as atividades da Universidade da Paz da ONU para o Brasil e membro do Grupo articulador que criou a Rede Gandhi em parceria com o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems), UNESCO e Associação Palas Athena. Além disso, é idealizador, membro fundador e da atual diretoria do Instituto Zero a Seis – Primeira Infância e Cultura de Paz. Confira a entrevista completa.
A corrupção pode ser tratada como doença?
Depende do conceito que se utiliza para definir doença. Temos que pensar que além da saúde física e mental, que habitualmente consagramos nas definições, poderíamos incluir, também, a saúde social. Dessa forma, o conceito compreenderia também o respeito às normas, as leis e aos regimentos, ou seja, aos ritos que a sociedade estabelece. Dessa forma, poderíamos considerar que na atividade de corrupção há um adoecimento social, relativo aos valores éticos que são consensualmente aceitos pela sociedade.
O senhor afirma que o corrupto nasce na faixa etária de 0-8 anos, como se dá esse processo?
Já nos primeiros anos de vida da criança podemos observar tendências maiores ou menores de um sentimento moral, que denominamos empatia. A empatia é uma emoção na qual o indivíduo é capaz de reconhecer e identificar os sentimentos do outro, isto é, significa ter consideração pelo próximo. Seria a capacidade de levar em conta no próprio comportamento as necessidades dos demais. Obviamente, nesse sentido, o bebê tem uma capacidade limitada. À medida que evoluímos e amadurecemos, essa capacidade se desenvolve. A partir de 18 meses, já é possível verificar grandes diferenças entre pessoas, como por exemplo, a empatia. Alguns possuem grande capacidade de empatia e outros não a desenvolvem adequadamente. Como esta característica não é um privilégio do ser humano, a encontramos também nos animais. Uma parte importante deste desenvolvimento deve-se à genética e outra ao ambiente. Animais de laboratório, por exemplo, criados em situações adversas, tornam-se perversos, malvados ou agressivos.
O corrupto já nasce corrupto?
No ser humano o núcleo de desenvolvimento da habilidade de empatia é bastante precoce. A partir desta capacidade vamos ter indivíduos que, dentro de determinados contextos e situações, irão transgredir em relação aos ritos normais da sociedade. Existe um transtorno mental infantil, que chamamos de transtorno de conduta. Essas crianças possuem menos de 10 anos e apresentam padrão repetitivo e persistente de comportamento, no qual são violados os direitos básicos dos outro ou normas e regras da idade.
Qual seria este padrão?
São crianças que, por exemplo, roubam e envolvem-se deliberadamente em provocações de incêndio, destruição de propriedades alheias e sentem prazer neste tipo de atividade. Exemplificando, crianças que são cruéis com animais e intimidam outras da mesma idade. Uma criança “normal” não faz mal aos animais, ao contrário, às vezes, até exageradamente, sentem-se culpadas por algo ruim que lhes acontece.
É possível avaliar cientificamente essa personalidade?
A alteração é perceptível em exames de neuroimagens de crianças e adolescentes. Enquanto assistem a um filme ou até mesmo observam uma fotografia em que alguém impõe sofrimento ou prejuízo ao outro, a criança com essa tendência ativa áreas do cérebro ligadas ao prazer. Diferente de uma criança normal que diante da situação utiliza áreas cerebrais de sofrimento próprio, como se ela mesma estivesse sofrendo a agressão. Em outras palavras, crianças normais ligam as imagens a si mesmas.
Como isso chega na fase adulta do desenvolvimento?
Levando para a vida adulta, sem generalizar, nós teríamos um correlato da infância: dentro dos transtornos de personalidade, o comportamento anti-social, assemelha-se ao transtorno de conduta na infância. Não é todo corrupto que manifesta esta característica, trata-se de um diagnostico psiquiátrico. Há um padrão invasivo de desrespeito e violação ao direito dos outros, que perpassa vários setores da vida da pessoa. O indivíduo fracassa em conviver com normas sociais, com comportamentos legais, e freqüentemente, envolve-se com processos ou litígios.
Como é o perfil do corrupto?
São pessoas que tem propensão a enganar ou mentem repetidamente para obter vantagens pessoais ou prazer. Essas pessoas apresentam dificuldade, por exemplo, em fazer planos para o futuro. O indivíduo com esta propensão faz atalhos na vida, não enfrenta as dificuldades que eventualmente surgem. Não gosta de treinamento, de ter emprego fixo, de empenhar-se e buscar benefícios de longo prazo. Ao contrário, eles tendem a procurar o caminho mais fácil. Além do mais, são pessoas agressivas, que quando impedidas dos propósitos corruptos transformam-se, agredindo ou se vitimizando. De modo geral, são pessoas inteligente, hábeis, com discurso muito bem articulado, mas com irresponsabilidade consistente, que fracassam em honrar suas obrigações financeiras, que não se conformam em não estar bem e não levar vantagem perante os demais.
O comportamento de “corromper” e ser corrompido tem cura?
De modo geral, não. Mas, quando mais precocemente for detectada a anormalidade, no sentido da transgressão e da não subordinação das regras sociais, melhor. Outro aspecto importante é o ambiental. Em um ambiente liberal, permissivo, no qual os modelos são ruins, o que é apenas tendência, tende a manifestar-se. Um exemplo clássico aconteceu em Nova York, no inicio da década de 90, quando cerca de 150 mil pessoas por dia pulavam a catraca do metrô, sem pagar. Os responsáveis estabeleceram um projeto de punição para o fato e o índice de transgressão caiu para zero, além de ter reverberado numa série de outros comportamentos do mesmo tipo. O fato levou o prefeito a gradativamente implantar uma política de tolerância e permissão zero, que ocasionou a redução ainda maior dos elementos transgressores, pela quase certeza da punição. O exemplo abrangeu a cidade inteira, com milhões de pessoas, com flagrante modificação de comportamento. Dessa forma, percebemos a importância do ambiente e da cultura para a facilitação social de comportamentos latentes. Quando uma criança ou adolescente ingressa em ambiente onde é acolhida e impõem-se um tratamento disciplinar, tende a enquadrar-se rapidamente. É possível que a sociedade adote medidas disciplinares de fiscalização que abortem comportamentos transgressores e corruptos, mesmo em pessoas com essa tendência, seja do ponto de vista genético ou no seu desenvolvimento. De modo geral, um indivíduo que tem esse caráter, se retornar ao contexto liberal, muito provavelmente voltará a transgredir.
O poder, no caso de políticos, por exemplo, é um elemento a mais no ato de corrupção?
Sem dúvida nenhuma. Os indivíduos transgressores também tendem a procurar lugares e profissões que facilitem o exercício da própria tendência. Assim, essas pessoas tendem a ser “bons políticos”, procurando o meio onde tendem a encontrar contexto favorável e o controle é muito mais frouxo. Alguém com essas características que comece a trabalhar em um banco, por exemplo, vai ser pego na primeira ou na segunda vez que fizer algo errado.
Como o senhor analisa os últimos e seguidos acontecimentos que envolvem corrupção na Esplanada dos Ministérios?
Eu acho que vários aspectos favorecem esses acontecimentos. Primeiramente, o corrupto procura e ascende com facilidade no ambiente político que for permissivo, e o Brasil é um país notoriamente permissivo na contravenção. Somos conhecidos como o país do jeitinho, alguns até se orgulham dessa flexibilidade. Este é um aspecto cultural: o ambiente político brasileiro não se identifica com a ética, a moralidade e a correção. Historicamente o Brasil foi um país com índice muito elevado de corrupção nos poderes instituídos. Os julgamentos e as punições são muito lentos. O Judiciário demora muito em suas resoluções, algumas até caem em esquecimento ou quando são julgadas, deixam a pessoa escapar. Exatamente, por serem personalidades ardilosas na argumentação, o corrupto não passa recibo, não deixa rastro do que faz. A impunidade passa a ser outro fator importante em relação à política. Outro aspecto relevante é a distância do governo federal em relação à população. Os poderes encontram-se encastelados. Isso se une ao fato da sociedade não ter a cultura do exercício da cidadania, da fiscalização e da cobrança. Os dados são omitidos, por vezes maquiados ou apresentados em uma linguagem indecifrável. O cidadão comum não acompanha os candidatos em que votou. É uma parceria que envolve tanto a sociedade civil quanto os poderes numa trama macabra e muito mantenedora da imagem do Brasil.
Para utilizar as palavras da presidente Dilma Rousseff, ocorre um “apedrejamento moral” aos corruptos quando são descobertos. Como eles reagem? Até que ponto eles sofrem com isso?
Uma característica do indivíduo corrupto ou com transtorno de personalidade é a ausência de remorso, indicada pela indiferença de expressão, de mímica facial, o famoso “cara de pau”. Não há emoção ou vergonha pelas ações, reação visível em pessoas normais. A resposta pode ser indicada, ainda, pela racionalização. O corrupto apresenta justificativa racional, bem argumentada e arquitetada, que explica o próprio ato. Ou, ainda, acusa outras pessoas, ou se transforma em vítima, alegando perseguição política, por exemplo.
Qual a maneira correta de lidar com o corrupto?
O que o corrupto vai se importar certamente é com multas e punições, ou se ele for privado de alguns direitos universais, como assumir cargos e funções publicas. Quando sente na própria carne o prejuízo, tende a reduzir a reincidência. Se você permitir com essa liberalidade e com essa falta de penalização, que eles retomem suas atividades, voltarão a exercê-las da mesma forma que exerciam anteriormente. Em regra, é o que se observa no mundo inteiro.
Existem medidas para criarmos caminho diferente para as próximas gerações?
Seria fundamental que nos primeiros anos, todas as crianças brasileiras pudessem viver em ambientes saudáveis para o desenvolvimento, principalmente social e emocional, incluindo aí a empatia. Isso se faz com “cuidadores”, familiares ou não, com capacidade de vínculo, de forma a permitir que as crianças pequenas vivenciem situações em que os modelos sejam socialmente adequados. Isso inclui o noticiário da televisão, a conduta das pessoas que são modelares e exemplares na sociedade. A mídia e o poder público têm papel primordial na educação das pessoas, são guias, são modelos e exemplos que a sociedade segue. A medida para se criar um caminho diferente nas próximas gerações é fazer prevalecer a moralidade, a ética e a correção de todas as pessoas, principalmente daquelas que estão em contato direto com as crianças nas suas fases mais criticas.