No princípio era o verbo

(*) Maria Lucia Victor Barbosa

Disse Zaratustra o filósofo de Nietzsche: “Novos caminhos sigo, uma nova fala me empolga; como todos os criadores, cansei-me das velhas línguas. Não quer mais meu espírito caminhar com solas gastas”.

Novos rumos sigo nas veredas da palavra, talvez por ter percorrido antes muitos descaminhos nas trilhas do verbo onde tudo principia ou quem sabe, porque a palavra hoje me conduz de forma mais intensa e não eu a ela. Na verdade não apenas conduz como se leva uma criança pela mão, mas arrebata, subjuga, às vezes aniquila, esgota, pois a palavra pode ser turbilhão de amor. Como paixão de minha vida à qual dedico a existência sei também que ela é traiçoeira. Foge de mim. Só vem quando cisma de aparecer. É como gato arredio, pois só deita no meu colo quando quer.

Com a palavra sou espadachim: corto, luto, firo e recebo de volta estocadas que ferem meu espírito hoje repleto de cicatrizes. Com a palavra posso fazer sombra, exalar perfume, ser buquê de rosas vermelhas, jasmins-do-cabo ao luar, suave trepidação de borboletas azuis ao pôr-do-sol. Com a palavra volto à casa de meu avô para descrever as cortinas brancas das janelas da grande sala de visita que esvoaçavam quais tênues fantasmas ao alvorecer.

Ah, palavra, à qual me escravizo, minha razão de ser, paixão candente, reverberação de dor. Com ela não tenho fronteira, rompo mundos, alcanço estrelas, penetro em corações sequiosos de boas palavras e neles semeio sementes de flamboyants.

Ainda mais agora com essa a nona maravilha do mundo ao meu alcance, a Internet, potencializo a palavra e às vezes me vingo fazendo dela picadinho. De fato a Internet é meu “fiat lux”. Através dela, como aprendiz de Deus, crio e me comunico como meus semelhantes. É só querer. Basta intuir. Está ao alcance dos dedos. Está dentro da mente ou no avesso do corpo.

Via computador as palavras são puro instrumento transmental, ligações extracorpóreas, comunicação atemporal, contatos de terceiro grau. Considere-se ainda que nesse universo mágico o que se escreve é de alta periculosidade, pois assim como nele se cria e se mantém também se destrói como na trindade dos deuses do hinduísmo: Brahma, Vishnu e Shiva. Na internet muitos “crimes” são cometidos através da palavra, pois ela confere tanto o poder de exaltar quanto o de aniquilar sentimentos alheios.

Na palavra às vezes me refugio e ela me expulsa. Quando imploro por seu consolo ela me ignora. E se a quero comigo vai embora sem deixar rastro. Trabalhosa e difícil, sobretudo, quando escrita, me engana, me tortura com seus caprichos e se faz de rogada. E só quem a ela se submete para poder existir conhece o desespero de tentar desvendar seus mistérios. Ainda assim, ama a palavra.

Hoje entendo a simbologia de Thot, o deus dos escribas que pertenceu ao panteon egípcio. Para o povo que viveu na maior das civilizações já havidas, ele era o “senhor das palavras divinas” e os sacerdotes ligados à teologia de Heliópolis o qualificavam como “a língua de Aton”. Ao mesmo tempo, era considerado o inventor da palavra falada e escrita, assim como das fórmulas mágicas que conferiam poder aos deuses. Ele era a inteligência divina, o verbo divino. Também era o deus da lua, o guerreiro desse astro abençoado periodicamente por Seth. Elevado à categoria de demiurgo (criatura intermediária entre a natureza divina e a humana), lhe era atribuído o grito que saído de sua boca criou o universo. Ele era ainda o regulador do tempo e aquele que faz reinar a ordem no universo.

Thot era, pois, o grandioso senhor da palavra e a ele submeto simbolicamente meu incessante lavor que nunca se completa, que nunca satisfaz e que, ainda assim, me arrasta e faz de mim escriba que no Egito antigo era tão valorizado, hoje nem tanto.

O que dirão diante deste texto os que porventura lançarem os olhos sobre ele? Como traduzirão e decodificarão esses hieróglifos de minha alma? Nunca vou saber o que será alcançado, se produzi o tédio, se levei o leitor a abandonar essas poucas linhas, se conquistarei o plano de outras mentes que à minha virão através da palavra aqui lançada.

De todo modo, apresento aos que me lerem minhas escusas por planar sob os cumes altos da expressão onde é permitida a linguagem mais rarefeita dos sentimentos e dos sonhos.

Como rio caudaloso a palavra me arrastou, se impôs, me dominou. E assim, chego cansada ao final de mais essa jornada, ou seja, desse texto, consciente de que mesmo que um dia perca o pouco que tenho em termos profissionais, ainda restará o que de mim faz um ser vivente: o verbo na forma escrita.

(*) Maria Lucia Victor Barbosa é escritora e socióloga.