(*) Rizzatto Nunes –
Meu amigo Outrem Ego inspirou-me a escrever este artigo. Disse-me ele: “Sou motorista habilitado há mais quarenta anos. Nunca sofri ou causei nenhum acidente – Graças a Deus! – e nesses anos todos recebi algumas multas, todas por estacionamento proibido ou por ter furado o rodízio (foram duas vezes em que simplesmente me esqueci)”.
E continuou: “Sinto-me acuado. Acabei de receber duas notificações de multas por excesso de velocidade… Sabe de quanto? Uma, porque eu estava a 57 Km por hora numa via em que a velocidade máxima permitida era de 50 – e à noite sem ninguém por perto. Outra por trafegar a 48 Km por hora, quando o máximo permitido era apenas 40. Não consigo mais dirigir com tranquilidade pelas ruas de São Paulo, pois está muito difícil saber qual é a velocidade permitida, e em que quais vias. Como tenho medo de perder minha carteira, tenho andado a 40 km por hora em quase todos os lugares e vou sempre preocupado…”.
Depois, arrematou: “Bem, quero dizer ganhei mais uma preocupação, pois há os bandidos que assaltam os motoristas, os buracos das ruas que estragam nossos veículos, o trânsito infernal, os pedestres que literalmente pulam à frente fora da faixa, os motoqueiros que passam como bólidos entre os veículos num espaço minúsculo (será que eles não são multados?), enfim, mais um problema junto de uma série de outros. É assim mesmo que se constrói uma sociedade?”.
Como um dos assuntos do momento é criticar motoristas, inspirado por meu amigo, resolvi falar sobre mobilidade urbana, mas com um foco diferente. Ficarei, digamos assim, na contramão de direção: mostrarei algumas das violações praticadas contra os motoristas.
Antes de mais nada, e para evitar confusão, coloco o óbvio: qualquer pessoa é a favor da punição a motoristas infratores, especialmente aqueles que colocam em risco a segurança e a vida dos demais (e de si mesmos). Por isso, é fundamental existirem leis que determinem o controle do trânsito, que fixem punições e estipulem critérios de aferição das infrações.
No entanto, existem várias infrações ligadas ao uso de veículos que não acarretam nenhum tipo de perigo ou risco à comunidade ou às demais pessoas. Está entre essas infrações, por exemplo, estacionar em local proibido, estacionar nas chamadas “zonas azuis” sem a colocação do cartão, trafegar com o veículo no horário proibido nas cidades com sistema de rodízio, como a Capital de São Paulo, etc. (É verdade que se pode objetar que o estacionamento em alguns locais pode gerar transtorno no trânsito, como, por exemplo, na Av. Paulista. Nesse caso a infração seria mais grave que estacionar em outro local proibido de menos movimento. No entanto, nem assim se justificaria, como veremos, a aplicação da pena de suspensão ou perda do direito de dirigir. Bastaria guinchar o veículo e, na hipótese, aplicar uma multa maior que as demais. Isso sim seria adequado: multas diferentes para estacionamento em local proibido em ruas diferenciadas).
Ora, ainda que se admita que infrações desse tipo possam gerar a imposição de uma multa pecuniária, nada justifica que se imponha a perda ou a suspensão do direito de o motorista continuar dirigindo por infrações dessa ordem. Aliás, ao contrário, como mostrarei, o Sistema Constitucional Brasileiro proíbe que uma lei possa impor penalidade desse tipo.
Uma coisa é o motorista trafegar de forma perigosa, com o veículo sem condições de dirigibilidade, fazendo conversões proibidas, movimentando-se em velocidade excessiva, fazendo ultrapassagens perigosas, dirigindo embriagado etc., outra, muito diferente, é ser pego trafegando no horário proibido pelo rodízio ou não ter colocado o cartão da zona azul ou, ainda, estacionar o veículo em local proibido.
É bem fácil perceber que no primeiro caso o motorista representa um perigo à incolumidade física das demais pessoas, podendo no segundo, quando muito, gerar transtornos de ordem administrativa ou queda na arrecadação da verba prevista para o estacionamento nas vias públicas. A punição em cada hipótese deve ser – só pode ser – muito diferente.
O problema está em que o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabeleceu uma confusão entre as duas formas de ação dos motoristas. Ao criar um sistema de pontuação, no qual são somados, na mesma vala comum, os dois tipos de infrações acabaram gerando, concretamente, uma violação ao direito dos motoristas. Suponhamos que alguém que sempre dirija de forma adequada e preventiva, nunca excedendo a velocidade, não fazendo ultrapassagens proibidas etc., mas que tenha que usar o automóvel para trabalhar, seja apanhado dirigindo, no período de um ano, por seis vezes, no horário proibido pelo rodízio. Ele somará 24 pontos (4 pontos de cada vez) e ficará sem a Carteira Nacional de Habilitação-CNH.
No entanto, se, no mesmo período, outro motorista for multado por excesso de velocidade por duas vezes não sofrerá a mesma pena, pois terá somado apenas 14 pontos (7 de cada vez).
O motorista perderá a habilitação se tiver, também, tantas autuações de zona azul e por estacionamento proibido quantas forem necessárias para atingir mais de 20 pontos.
Os exemplos, claro, se multiplicam na exata medida das combinações de infrações e pontuações. O grave nisso tudo não é só a evidente injustiça concreta da situação em que se acabam colocando os cidadãos, mas também a distorção que o sistema gera, uma vez que acaba punindo o melhor motorista em detrimento do pior. Por isso, penso, este ponto da lei é inconstitucional.
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Há mais, mas temos de ir devagar… Continuarei na próxima semana.
(*) Luiz Antônio Rizzatto Nunes é professor de Direito, Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Livre-Docente em Direito do Consumidor pela PUC-SP e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo.