Simonal – ninguém sabe o duro que dei

Filme relata a trajetória do cantor e explica como a alcunha de dedo-duro pôs um fim em sua carreira

(*) Ana Carolina Castro e Everton Amaro

simonalO documentário “Simonal – ninguém sabe o duro que dei” mostra dois momentos da vida de um artista que teve uma carreira meteórica, tanto na ascensão, quanto na decadência. Dirigido por Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, o longa metragem é muito mais que o relato de um talento particular.

Na verdade, Simonal é a prova de que a imoralidade sempre esteve enclausurada na sociedade brasileira. Durante 84 minutos, o enredo do documentário perpassa por inúmeros depoimentos, mostrando como a máquina difamatória pode destruir uma carreira, apagar uma história e eliminar um pedaço da memória cultural de um país.

Alinhavados no documentário, os fragmentos de entrevistas e shows revelam um homem inteligente, que não gostava da imagem de negro com condição social que não condizia com boa qualidade técnica. Simonal era consciente do seu talento, e ganhou o apelido de “preto arrogante”. Filho de uma empregada doméstica, o artista se tornou um dos grandes nomes da música nacional. Em dueto com Sarah Vaughan, regeu um coro de 30 mil vozes no Maracanãzinho com inconfundível maestria.

Como cantor criativo, capaz de transitar por vários estilos musicais, Simonal era uma das possibilidades do pop brasileiro. Fracassou, no entanto, por conta da repressão militar e da pseudo “ditadura” intelectual.

No final de 1971, por suspeitar que estava sendo roubado, Simonal mandou bater em seu contador Raphael Viviani, que acabou sendo torturado no extinto Dops (Departamento de Ordem Política e Social). No filme, Viviani conta que foi torturado com choques elétricos e que só assinou a confissão do roubo – que ele veementemente nega – pois ameaçaram sua família. Sua mulher deu queixa de seu desaparecimento e o delegado que investigou o caso ligou os pontos e chegou a Simonal. A surra rendeu ao cantor, imortalizado pela música País Tropical – de Jorge Ben Jor-, a condenação de cinco anos e quatro meses em cárcere, pena que cumpriu em liberdade.

A acusação de que era informante do Dops, no entanto, logo começou a surgir nas manchetes de jornais e o boato teve grande adesão. Os cartunistas Ziraldo e Jaguar engrossaram o coro dos que desaprovavam o trabalho de Simonal, e esse assunto é abordado pelo filme de Claudio Manoel. Com declarações prosaicas, os comandantes da onda de difamação engendrada no jornal “O Pasquim” reconhecem que parte do ódio contra Simonal decorria do fato dele ser um “preto bem-sucedido”. Admitindo um maniqueísmo descarado, Ziraldo afirma que Simonal estava do lado errado por não assumir posição esquerdista.

Desmoralizado no meio artístico, a carreira de Simonal entrou em declínio e em pouco tempo o cantor caiu em completo ostracismo. Tomado pela depressão e pelo alcoolismo, o cantor faleceu em 2000. A alcunha de dedo-duro o perseguiu por toda vida. E depois dela também.

Em 2002, a família de Simonal solicitou a abertura do processo para verificar se o cantor era ou não informante do regime militar. A investigação encontrou um documento em que José Gregori, então secretário de Direitos Humanos, afirmava que não havia evidências da ligação entre Simonal e o Dops nem nos arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI) nem no Centro de Inteligência do Exército. Com o resultado da pesquisa, o nome de Simonal foi simbolicamente reabilitado pela Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no ano seguinte, mas já era tarde.

Hoje os ex-comandantes do “O Pasquim” sabem que Simonal jamais fez parte dos órgãos de repressão. Não demonstram muito arrependimento pelo passado, no entanto. No mais, Ziraldo declara que os confrontos ideológicos eram como “lutas de capoeira, com pernadas para todos os lados”, dando a entender que Simonal tomou a sua. Já o cartunista Jaguar declara com deboche: “Ele morreu de cirrose. Poderia ter sido eu”. Ao falar sobre negros de sucesso, Jaguar declara de forma nefasta que “Pelé é branco”.

Em questão de danos morais, eles só conhecem o perdão traduzido em reais, pois a Comissão de Anistia pagou indenização de cerca de R$1 milhão, além da permanente de R$ 4.375,88 por serem considerados perseguidos pelo regime militar. Com Simonal, foi diferente. Ele morreu abandonado, esquecido pelo público que antes o aclamava.