Cidadão Boilesen

Documentário vencedor do festival “É Tudo Verdade” mostra a participação do empresariado paulista na repressão dos anos de chumbo

(*) Ana Carolina Castro e Karina Trevizan

A Ditadura Militar é uma página virada na história do Brasil, superada e encerrada. Consenso? Nem tanto. Afinal, para muitos o passado e o presente ainda se misturam. O documentário “Cidadão Boilesen”, que fez parte da 14ª edição do festival “É Tudo Verdade”, encerrado em abril, trata da participação do empresariado paulista na repressão, com a história de Henning Albert Boilesen, então presidente do grupo Ultragás, como pano de fundo. Por ser um assunto escondido debaixo do tapete, o diretor acertou na escolha do tema, que lhe rendeu o prêmio de melhor documentário no festival deste ano.
O filme, escrito e dirigido pelo jornalista Chaim Litewski, aponta o financiamento da tortura pelos grupos empresariais, através do que se passou a chamar de “caixinha da tortura”. Boilesen, de nacionalidade dinamarquesa e com intensa aversão aos comunistas, ficou conhecido entre os perseguidos políticos da época não apenas pela colaboração financeira que dava à Oban (Operação Bandeirantes), mas também pelo prazer que tinha em assistir a sessões de tortura. É a ele, inclusive, atribuída a criação da Pianola Boilesen, um instrumento de tortura que, acionado por um teclado, emitia descargas elétricas graduais.

Reprodução
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Esse lado sádico e obscuro de Boilesen, no entanto, não surgiu com a ditadura brasileira. Litewski realizou um exaustivo trabalho de pesquisa para compreender a personalidade do empresário, e foi à Dinamarca investigar a infância e a juventude do industrial. Surpreendentemente, descobriu que quando criança, Boilesen gostava muito de presenciar brigas e de ver seus colegas sendo punidos.
Sua ligação com a repressão fez com que o industrial se tornasse o número um da lista de alvos dos militantes, seguido pelos também empresários Peri Igel e Sebastião Camargo. A merecida má fama fez com que Boilesen fosse assassinado por um grupo esquerdista na mesma Alameda Casa Branca onde, dois anos mais cedo, morreu o militante comunista Carlos Marighella, surpreendido por agentes do DOPS que estavam sob a chefia do delegado Sérgio Paranhos Fleury, amigo pessoal do empresário dinamarquês.
Depoimentos
Para dar suporte à narrativa dos tortuosos caminhos da biografia de Boilesen, o documentário conta com o depoimento de personalidades significativas quando o tema é a ditadura, como ex-guerrilheiros, políticos, policiais e até o filho do empresário. Um exemplo a ser lembrado é o militar reformado Carlos Brilhante Ustra, que esteve no comando do DOI-CODI na década de 70. Porém, é de se duvidar que o discurso seja realmente de autoria própria, pois Ustra é o único entrevistado que lê o tempo todo.
Outro depoente que participa do filme é o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Abusando da segunda pessoa do plural, FHC articulou seu discurso de forma que se polarizasse a ditadura entre “o lado de cá e o lado de lá”, o dos esquerdistas oprimidos e o dos militares agressores. Não foi essa, no entanto, a intenção do diretor Litewski, que conseguiu fugir do padrão corriqueiro da maioria das obras artísticas sobre a ditadura. “Não partimos de conceitos predeterminados. Os diferentes pontos de vista foram articulados e respeitados”, explicou Litewski em entrevista concedida ao “Jornal do Brasil”. Vale lembrar que FHC nunca fez parte de lutas armadas, e se auto-exilou no período militar por entender que sua liberdade profissional como professor estava comprometida.
Há depoimentos também de perseguidos políticos da época se posicionando, obviamente, contra o então presidente a Ultragas. Porém, Litewski sabiamente não os coloca em posição de vítimas inconsoláveis, não apelando para descrições de cenas de torturas ou closes em cicatrizes. Em vez disso, o filme mostra o que não é sabido, ou pelo menos o que é menos comentado, sobre os esquerdistas da ditadura, como a articulação do assassinato de Boilesen e a comemoração pela morte de algum representante da direita.
O único que defende Boilesen no documentário é seu filho mais velho. Ele vê como barbárie o assassinato do empresário e o defende veementemente, afirmando que as acusações que pesam sobre o pai são absurdas.
(Reprodução) 15 de abril de 1971: Sobre o corpo, panfletos com a ameaça: ''Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Olho por olho, dente por dente''
(Reprodução) 15 de abril de 1971: Sobre o corpo, panfletos com a ameaça: ''Como ele, existem muitos outros e sabemos quem são. Olho por olho, dente por dente''
Presidente do Fórum Permanente dos Ex-perseguidos de São Paulo, Luis Cardoso, depois de assistir ao filme exibido na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, no último dia 20, explica esse ponto: “Eles [militares] praticaram isso [agressão] com muito mais violência que nós, mas patrocinados pelo Estado. […] Muitos companheiros foram mortos de forma muito mais brutal do que o assassinado do Boilesen, que eles tanto condenam”. Cardoso também acusa o presidente Lula de apontar a anistia como esquecimento e superação da ditadura, e crítica: “Para nós, que sofremos toda a tortura, a anistia não é esquecimento nenhum”.