(*) Ucho Haddad –
Quando, na Suíça, o mundo soube que o Brasil recepcionaria a Copa de 2014, o sempre messiânico Luiz Inácio Lula da Silva abusou das bravatas ao anunciar que o País realizaria um evento esportivo de causar inveja a qualquer terráqueo. Mas o presidente brasileiro não informou em qual quesito essa supremacia se daria. Se o discurso do metalúrgico tinha como base a contabilidade do evento, os Jogos Panamericanos do Rio não deixaram dúvidas sobre a expertise das autoridades tupiniquins quando o assunto é ocultismo com gatunagem. Até porque, jamais se viu tamanho assalto aos cofres públicos.
Com o país mergulhado nos mais diversos problemas, a começar pelos sociais, o Brasil não tem condições para abrigar um evento dessa magnitude. Certamente há os que discordam da minha opinião, o que faz da democracia um modelo ideal para convívio pacífico. Principalmente porque o antagonismo de opiniões é que garante a manutenção da liberdade de expressão e do pensamento.
Absurdo seria negar que um evento como a Copa proporciona ao país-sede uma enorme e invejável projeção no cenário internacional, sem contar o movimento da economia – formal e informal –, mas é preciso reconhecer que essa exposição pode ser negativa, dependendo das circunstâncias e da vertente analítica. No contraponto desse positivismo temporário, é vexatório para um país que há décadas patina no status de “nação do futuro” torrar 1,5% do PIB em um evento esportivo, enquanto nas principais ruas brasileiras cresce o número de pessoas que reviram o lixo para saciar a sempre malvada fome.
Deixando de lado os encantos da bola, é preciso admitir que um evento esportivo, em análise mais ampla, não ocorre apenas e exclusivamente entre os muros de uma arena esportiva. Há um entorno gravitacional que preocupa muito mais em termos de transgressões do que o próprio palco do certame. Tanto é assim, que o Estatuto do Torcedor, que caminha para ser esquecido no mesmo limbo em que está a Constituição federal, tratou de assuntos periféricos que fogem da muralha esportiva. Mas todo esse conjunto de regras pouco trouxe ao verdadeiro torcedor em termos de garantias.
O entorno de qualquer estádio brasileiro faz jus à versão mais atualizada do Código Penal, tamanho é o número de transgressões e crimes praticados antes e depois dos jogos. Ladrões travestidos de flanelinhas usam um semblante nada angelical para intimidar incautos torcedores motorizados. Ao arrepio das leis e das normas de vigilância sanitária, ambulantes vendem sanduíches nada ortodoxos e bebidas que nem de longe podem ser chamadas de cachaça ou algo parecido. Entorpecentes de todos os naipes estão à disposição daqueles que vão aos estádios a bordo dos mais variados objetivos, exceto o de torcer pela esquadra do coração.
Saltando desse “discurso” moralista que todos estão cansados de saber, tomo como exemplo o entrevero criminoso que na noite de ontem, quarta-feira (3 de junho), contrapôs na Pauliceia Desvairada alguns vascaínos exaltados e muitos corintianos enlouquecidos. O resultado do encontro não poderia ser outro. Sete feridos, um morto e dezenas de carros destruídos. Tudo porque a paixão pelo futebol tem servido, e não é de hoje, de escudo para que o crime organizado atue nas praças desportivas.
Não faz muito tempo, autoridades colocaram em prática uma tese simplista que, mesmo ferindo o direito constitucional de ir e vir, restringiu a apenas uma torcida o acesso aos grandes clássicos. Além de evidenciar a involução do ser humano, cada vez mais próximo do canibalismo social, e a inoperância de um Estado que falha em suas obrigações básicas, a nova regra é um paliativo oficial, pois diante da proibição a criminalidade migra para outros setores da sociedade, forçando os dito torcedores a esperarem seus supostos desafetos na vizinhança dos estádios. Ou seja, o crime transcende os jogos de futebol, está em toda parte.
A marginalização social tem levado o cidadão a buscar compensações psicológicas normalmente condenáveis, como forma de garantir, mesmo que seja através do crime, a própria existência. O ser humano exala uma clara necessidade de se destacar em seu gueto cotidiano, e para tal essas práticas com vieses criminosos são adotadas em substituição à ausência crescente do dinheiro, o que na sociedade capitalista faz do indivíduo um excluído. Essa tese não é revolucionária, pois na pré-história isso já valia como regra oficiosa. Ora, se de lá para cá a miopia administrativa impediu que as autoridades enxergassem o óbvio, o melhor a se fazer é recomeçar o mundo do ponto zero.
Quando uma sociedade chega a essa situação – de buscar compensações a qualquer preço –, em momento algum as autoridades devem criar regras de exceção para contornar problemas cujas soluções são mais complexas. De igual modo, uma nação que vive sob o manto de tão vergonhoso desmando não tem o direito de sonhar com um evento grandioso como a Copa.
É verdade que ter a Copa por aqui nos enche de esperança em relação ao amanhã, mas a marginalidade social está logo ali para colocar tudo a perder. Se por um lado ignorar a coerência é mutilar a lógica existencial, por outro a sinceridade sendo a indiscutível base da segurança. Sobre esse binômio repousa a realidade do presente, com ou sem bola rolando.
Desde que inventaram a circunferência e descobriram o futebol, o esporte mais popular do planeta é jogado preferencialmente com os pés. E é exatamente para eles [os pés] que o Estado brasileiro aponta a garrucha da incompetência.