29 anos sem Vinícius

Especialista em História da MPB fala sobre a arte de um dos principais nomes da cultura nacional

(*) Karina Trevizan e Ucho Haddad

Em 9 de julho de 1980, o país perdia um dos mais importantes artistas da Música Popular Brasileira. Vítima de edema pulmonar, falecia o artista Vinícius de Moraes, músico e poeta que levou a arte brasileira pelo mundo com maestria, deixando sua marca na história cultural do Brasil.

Especialista em História da MPB, o historiador José Adriano Fenerich concedeu entrevista ao ucho.info e comentou sobre a importância da trajetória de Vinícius para a música nacional. Autor da tese “Nem do morro, nem da cidade: As transformações do samba e a indústria cultural – 1920-1945”, Fenerich ressalta o talento inquestionável do artista, e acrescenta: “Vinícius de Moraes foi, além de um grande letrista e um grande compositor e poeta, um grande apaixonado”.

Qual a importância de Vinícius de Moraes para a música brasileira e de que forma ele influenciou as gerações futuras em termos musicais?

Ele ajudou a moldar a Bossa Nova. Vinícius foi para a “letra” tão importante como João Gilberto foi para o canto e o ritmo e Jobim para a composição e orquestração da Bossa Nova. E a Bossa Nova é um divisor de águas para a nossa música popular, definiu o que é a música popular moderna no Brasil. E a importância capital de Vinícius foi criar uma lírica que se enquadrasse perfeitamente nos pressupostos de equilíbrio e espontaneidade da Bossa Nova. Vinícius, por exemplo, não canta o amor colérico, afetado e dramático, como era cantado na maioria das vezes no período imediatamente anterior a Bossa Nova, por compositores como Lupicínio Rodrigues, por exemplo.Vinícius apenas dirá: “se você quiser ser minha namorada, ai que linda namorada você poderia ser”.

Mas a trajetória de Vinícius de Moraes não se limita a Bossa Nova. Mesmo antes da Bossa Nova, já havia feito trabalhos fundamentais, como “Orfeu Negro”, que virou filme e fez muito sucesso, principalmente nos EUA. Foi com “Orfeu Negro” que nomes como Agostinho dos Santos, Luis Bonfá, entre outros grandes músicos brasileiros, ganharam os EUA.

E mesmo depois da Bossa Nova, Vinícius também teve uma participação fundamental na elaboração da MPB. Junto com Baden Powell, compôs uma pequena série de sambas que se tornaram referência para a MPB: os “afro-sambas”.

Vinícius ao lado de Tom Jobim.
Vinícius ao lado de Tom Jobim.
Vinícius de Moraes protagonizou parcerias inesquecíveis, como a com Tom Jobim, com Maria Bethânia e com Toquinho. Quais os requisitos e dificuldades para se formar uma boa parceria musical?

Não existe muita regra para se ter parceiros. Aliás, não existe regra alguma. São bastante conhecidas as histórias, nos anos 30 e 40, de parcerias arrumadas e “compradas”. Nesta época, os critérios para a criação de parceiros eram muito fluídos. Noel Rosa, por exemplo, deu a parceria de algumas de suas músicas para quem ele gostava, mas sem que o “parceiro” tivesse efetivamente participado da composição. Há casos de compra. Benedito Lacerda comprou a parceria de algumas músicas de Pixinguinha. Ele, Benedito, não havia composto a música nem colaborado com Pixinguinha, apenas “comprou” o direito de se tornar um “co-autor” da música. Choros inesquecíveis como “1×0”, “Ingênuo”, “Vou Vivendo”, entre outros, são apenas de autoria de Pixinguinha, mas a parceria foi “vendida” a Benedito Lacerda, que desde então, aparece como co-autor. Existem vários casos assim na história de nossa música. Um pouco de ingenuidade e uma grande generosidade dos compositores somados a um certo oportunismo de alguns. Enfim…

Vinícius, de certo modo, manteve essa tradição. Ao menos a tradição da generosidade com os amigos. Não chegou a vender parcerias, mas algumas ele deu a parceria. O próprio Chico Buarque conta que, em algumas de suas parcerias com Vinícius, sua contribuição era irrisória, uma palavra para a letra e só isso. Mas ganhava a parceria de Vinícius assim mesmo. E é o próprio Chico que também conta que a parceria, para o Vinícius, era forma de selar a amizade. Assim, todos seus parceiros foram antes de mais nada seus grandes amigos.

Atualmente, há uma carência de parcerias na música brasileira?

Não sei se há uma carência de parceiras hoje em dia, mas, se há, talvez seja porque o sentido da amizade entre compositores e músicos tenha mudado. Antes eram amigos que faziam shows e compunham juntos. Hoje, ao menos na música comercial, na música mais industrializada e de gosto altamente duvidoso, parece que são os shows e os interesses comerciais que forjam as “amizades” e as “parcerias”. Até existiu um show, que se transformou em CD há um tempo atrás, que se chamou “Amigos”. Pois então, Vinícius não precisaria nomear nenhuma de suas apresentações desta forma. Pois ele só, compunha, tocava e se apresentava com seus amigos. O segredo da boa parceria talvez esteja aí, na cumplicidade e na amizade verdadeira, que não precisa se transformar em nome de show para que exista.

Vinícius, na sua opinião, soube musicar as letras de seus poemas ou escreveu boas letras para suas músicas?
Vinícius soube fazer letra de música como ninguém. É, certamente, um dos maiores letristas de todos os tempos da música popular, brasileira e mundial. Nem temos como duvidar disso. Ele tinha um refinamento para compor letras da mesma estatura ou até maior que fazia poemas. “Chega de Saudade”, “Samba da Benção”, “Samba de Orly” entre várias outras de suas canções figuram entre as “jóias da coroa” da MPB.

"Vinícius é um dos maiores letristas de todos os tempos da música popular, brasileira e mundial."Qual é a importância de Vinícius de Moraes para a música brasileira em meio ao cenário internacional da música?

Vinícius é, junto com João Gilberto e Tom Jobim, um dos pais criadores da Bossa Nova. E a Bossa Nova alçou a música brasileira para o cenário internacional de forma nunca vista até então. O respeito que a música brasileira tem hoje no exterior é devido, em grande parte, ao prestígio da Bossa Nova.

E Vinícius também foi um “militante” da MPB. Ele fez shows por todo o mundo, especialmente Argentina e Europa. E em todo lugar aonde ia, carregava consigo a música popular brasileira. Ele foi um dos nossos maiores “embaixadores musicais”. Como sabemos, Vinícius era Diplomata de carreira. Mas o seu serviço no Itamaraty nem se compara com seu serviço como compositor de música popular. Prestou mais e melhores serviços ao Brasil com suas canções, sem dúvida alguma.

Como o Brasil deve se lembrar desse artista tão importante para a música nacional?

Vinícius de Moraes foi, além de um grande letrista e um grande compositor e poeta, um grande apaixonado. Apaixonado pela vida, pela música e pelas mulheres que amou. Além, é claro, pelo uísque, que ele chamava de “cachorro engarrafado” (o melhor amigo do homem). “Samba da Benção”, por exemplo, resume bem o amor e paixão pela vida do “poetinha”.

Samba da Benção”
“Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba.”