(*) José Nêumanne Pinto –
E agora querem revogar a anistia que permitiu sua subida ao poder
Já que o secretário de Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo Vannuchi, está tão interessado em investigar a violação de direitos humanos pela ditadura militar que provocou uma crise interna no governo federal por propor a tal Comissão Nacional da Verdade, talvez fosse útil esclarecer algumas meias-verdades, que também são meias-mentiras, a respeito desse delicado assunto. A primeira delas é a motivação da iniciativa: conforme o proponente e seu patrono na Esplanada dos Ministérios, Tarso Genro, ministro da Justiça, não há intenção de ofender os militares nem de revogar a Lei da Anistia, que extinguiu os crimes políticos eventualmente cometidos na vigência do regime de exceção. A dificuldade para quem (como o autor destas linhas) não é fluente na algaravia ideológica de ambos é compreender como o dito cujo texto será blindado se ele vige desde 1979 e a proposta é revogar as leis que possam ter permitido tais violações entre 1964 e 1985.
“Criar a Comissão da Verdade é a favor das Forças Armadas, que são formadas por oficiais militares das três Armas, pessoas dedicadas à Pátria, ao serviço público, com sacrifícios pessoais, das suas famílias. Esses oficiais não podem ser misturados com meia dúzia, uma dúzia ou duas dúzias de pessoas que prendiam as opositoras políticas, despiam-nas e praticavam torturas sexuais, que ocultaram cadáveres. É um grande equívoco e eu tenho certeza de que o ministro da Defesa (Nelson Jobim) sabe disso”, disse Vannuchi em entrevista à Agência Brasil (oficial). Circulam na internet manifestos pedindo a adesão dos brasileiros à iniciativa e citando os “verdadeiros” heróis militares, caso do líder da revolta contra o uso da chibata para punir infratores nos navios da Marinha brasileira, em 1910, o marujo João Cândido. Ainda bem que os autores de tal manifesto tiveram o cuidado de evitar citar outro marinheiro, o cabo fuzileiro naval Anselmo, um agitador que depois se descobriu ter sido agente provocador dos quadros da inteligência militar que lutava contra os grupos da esquerda armada na guerra suja travada com o regime nos anos 70 do século passado. Isso, contudo, não impede a observação de que essa lisonja às instituições armadas é um mero e sórdido truque retórico.
É difícil crer que o secretário de Direitos Humanos ignore um tema de sua pasta a esse ponto. Pois qualquer aluno iniciante de algum cursinho mambembe de História recente do Brasil sabe muito bem que os agentes da repressão nos órgãos encarregados de combater a guerrilha não eram loucos solitários e isolados das instituições militares. João Cândido, assim como o capitão Carlos Lamarca, que fugiu do quartel de Quitaúna, na Grande São Paulo, com um caminhão de armamentos para liderar um grupelho guerrilheiro, é que pode ser considerado à margem dos quadros fardados. A repressão à esquerda armada – e todas as suas consequências – foi uma decisão de governo, cumprida pelas Forças Armadas, e desconhecer essa verdade histórica só pode resultar de crassa ignorância ou asquerosa má-fé. Portanto, qualquer tentativa de investigar violações de direitos humanos no regime de exceção sob comando militar mexerá, sim, com vespeiros em muro de quartel. Se isso é necessário ou não, são outros 500 cruzeiros. Mas não nos venham os atuais detentores do poder com tantos borzeguins ao leito.
A reabertura dessas chagas neste momento pode até contemplar o princípio legal vigente em vários países e recentemente adotado no Brasil de que a tortura é um crime que nunca prescreve. A medida legal será até salutar se a denúncia dos torturadores impedir que tais práticas continuem sendo cometidas em delegacias de polícia contra presos comuns ainda hoje. Mas urge considerar outras questões, que vão além dessa meia-verdade, simplória apenas na aparência. Isso poderá suscitar um longo debate jurídico, histórico, político e ético. Pois a lei que torna a tortura um crime imprescritível é posterior à anistia, sem a qual não teria havido o arranjo institucional que permitiu a volta da democracia clássica e a ascensão da esquerda desarmada ao poder.
Só isso poderá encerrar o debate, que talvez nem devesse ter sido iniciado. Mas ainda há mais a considerar, já que a palavra verdade está sendo utilizada de maneira, digamos, leve na denominação da iniciativa, que mais parece retaliação ou um gesto comparável a urinar no poste para marcar posição. As vítimas da ditadura assenhorearam-se do poder e agora fazem questão de mostrar quem manda neste Brasil de uma democracia pouco solidificada, onde ainda vige uma norma consensual, não inscrita na tradição jurídica, mas perfeitamente adequada aos hábitos e costumes, segundo a qual “manda quem pode, quem tem juízo obedece”.
Convicta de que a História é escrita por vencedores, em detrimento dos vencidos, o que justificaria até os atos bestiais de Hitler e Mussolini, por exemplo, a esquerda quer reescreve a ata deste nosso tempo porque perdeu a guerra suja, mas subiu ao poder. Ainda que não tenha êxito no Parlamento, pois, ao que parece, senadores e deputados não estão muito dispostos a remexer no lixo dos porões da ditadura, os patronos da Comissão Nacional da Verdade já conseguiram algumas conquistas. A primeira delas foi expor os atuais comandantes militares à humilhação pública de serem forçados a devolver seus cargos ao presidente. A segunda será refinar outro combustível para anabolizar a crescente popularidade de Lula, que poderá ostentar a láurea de “vingador dos torturados”.
E a maior de todas será elevar ao panteão dos heróis da democracia militantes que não arriscavam a pele pela liberdade, mas por sua forma favorita de tirania. Se conseguir ungir tal mentira como verdade, a proposta terá prestado um imenso desserviço à história e à democracia.