Corinthians: do passado que é uma bandeira ao presente que virou caso de polícia

    (*) Ucho Haddad –

    Em nome do clube que há quase cinco décadas escolhi como sendo o do coração, interrompi o ócio sabático para protestar contra a degradante situação que marca a história do Sport Clube Corinthians Paulista, hoje vítima do comportamento doentio de um grupelho que acreditar ser dono de tudo e de todos. E aqui não farei defesas descabidas, mas apontarei o indicador a quem direito.

    O tropeço do Corinthians na pré-Libertadores, que transformou em pesadelo o sonho do alvinegro paulistano de conquistar o certame continental, continua rendendo violentas e absurdas reticências. Após a derrota para o Tolima, na Colômbia, os jogadores e a diretoria do onze do Parque São Jorge foram alçados à mira da violência dos torcedores.

    Tão logo pisou em solo brasileiro, jogadores e cartolas rumaram para destino ignorado, mas acabaram seguidos pela imprensa e perseguidos por alguns incontroláveis fanáticos. Enquanto o Corinthians tentava escapar dos implacáveis holofotes e microfones, torcedores promoviam atos de vandalismo, com direito a pichações utópicas e destruição de patrimônio privado. E o resultado da fúria descontrolada não poderia ser outro, que não esse que vem sendo noticiado pela imprensa.

    Na manhã deste sábado, 5 de fevereiro, o centro de treinamento do clube foi novamente cercado por criminosos que se travestem de torcedores para, em um primeiro momento, escapar dos tentáculos da lei e da garras da Justiça. O mais novo capítulo dessa história bizarra que avança sob o manto da psicopatia popular materializou-se com o apedrejamento do ônibus do clube, no momento em que o veículo, com alguns jogadores, chegava ao CT.

    Indignado, o presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, ameaçou renunciar ao cargo se a violência continuasse. Ora, Sanchez deve estar acreditando que é muito mais importante que a importância. Assim como tantos outros presidentes, Andrés Sanchez passa e o Corinthians, apedrejado ou não, continua. Quem sabe alguém lhe sugeriu reservar alguns minutos do dia para brincar de presidente do Egito, que está na corda bamba e finge que é resistente. A eventual renúncia de Andrés Sanchez atenderia às ordens das torcidas organizadas, que só cresceram por conta da conivência irresponsável dos cartolas. E tal situação não é privilégio do onze corintiano, mas de todos os grandes clubes do futebol brasileiro.

    No meu último artigo escrevi que, em dezembro de 2007, disse a Andrés Sanchez, com toda convicção, que o melhor para o Corinthians – e para ele próprio – naquele momento era aterrissar na Série B, pois só assim seria possível reerguer de maneira sólida e planejada a história de um clube que tantas alegrias – sofridas, é verdade – já deu à sua vasta e insana torcida. Com um discurso aparentemente inovador, que convenceu apenas os mais desavisados, Sanchez cometeu o mesmo erro que outros tantos cartolas do esporte bretão cometem de maneira quase teimosa. Ao deixar a segunda divisão do futebol verde-louro como campeão, o presidente mergulhou no ufanismo mentiroso e parcial do marketing e se deixou influenciar pelos alarifes que, no caso do Corinthians, controlam o “bando de loucos”. Quando um clube centenário, como o Timão, se rende às opiniões e pressões de representantes de torcidas organizadas, o resultado não pode ser diferente desse que aí está.

    Por ocasião da chegada de Ronaldo Nazário ao mais popular clube paulista, deixei claro que a contratação do outrora melhor jogador do planeta era única e exclusivamente uma bem traçada jogada de marketing. E há uma considerável diferença entre uma jogada de marketing e outra dentro dos gramados, que vez por outra termina em gol. Há no Brasil o costume burro de fazer do marketing uma espécie de espada de harakiri do futebol.

    A contratação de Ronaldo Nazário não foi sacramentada para solucionar os problemas técnicos do time dentro das quatro linhas, mas para equacionar as finanças do clube, além de colocar o nome do Corinthians no topo das manchetes. Ou seja, Ronaldo passou a receber polpudas quantias para emprestar sua história de sucesso pretérito no futebol ao clube das tão cantadas tradições e glórias mil. E aqui deixo uma ressalva sobre o dinheiro pago a Ronaldo. Se o combinado foi exatamente esse, o atleta merece receber em dia aquilo que lhe é devido por contrato.

    O grande erro de Andrés Sanchez e de toda a diretoria do Corinthians foi vender à torcida uma história mentirosa como se fosse uma abissal verdade. Resolveram posar de Joseph Goebbels, chefe da propaganda nazista, que ganhou fama mundial não apenas pela truculência que dava as ordens no Reich, mas no rastro da célebre frase “Uma mentira muitas vezes repetidas, torna-se verdade”. Qualquer pessoa de bom senso e parco conhecimento de futebol sabe que, por conta do histórico de lesões e consequentes cirurgias, o camisa 9 do alvinegro jamais repetirá em gramados tupiniquins as brilhantes exibições que protagonizou em tempos outros nos badalados estádios do Velho Mundo.

    Considerando que o Corinthians embolsa mensalmente gordas somas para abrigar Ronaldo em seu elenco, o melhor destino que poderia ser dado ao inesperado dinheiro era –como ainda é – contratar alguém que fizesse o que a atual maior estrela do time já não faz. Dribles desconcertantes, jogadas geniais, arrancadas inexplicáveis e gols inesquecíveis. E que ninguém se espante com a defesa que ora faço de Ronaldo, pois se em algumas ocasiões o critiquei para manter a coerência, cabe-me neste momento a obrigação de ser seu escudo, se é que ele precisa disso. Mas uma coisa é certa nesse campo de batalha. Assim como Ronaldo, estou longe de ostentar um físico de toureiro espanhol em início de carreira. E isso pode interromper a trajetória de algumas pedradas, mesmo as disparadas por alguns setores oportunistas da imprensa.

    O desejo momentâneo de Ronaldo é antecipar a aposentadoria, mas se fizer isso estará se curvando ao terrorismo que brota das entranhas da torcida dita organizada. Por outro lado, há filigranas contratuais impostas pelos patrocinadores que impedem o jogador de mandar tudo para o espaço, algo plenamente viável pelo tanto que sobra em suas contas bancárias. Ronaldo tem sido chamado de mercenário, mas esse é o único adjetivo que não lhe serve. A covardia maior nessa história toda é que a cartolagem corintiana ainda não saiu em defesa do jogador que até então serviu para tapar os rombos financeiros deixados pela diretoria anterior. Isso sim deveria ser lembrado com largueza, mas não há alguém com coragem e massa cinzenta para tal.

    Os atos de vandalismo que emolduram o aperreio do Corinthians brotam da impunidade que corta o País do Oiapoque ao Chuí, turbinada nos últimos oito anos pela leniência irresponsável dos governantes dessa tresloucada Terra de Macunaíma com a corrupção e o desmando. Sem que nenhum transgressor tivesse sido punido exemplarmente nesse período, floresceu na sociedade a sensação de que, ao arrepio da lei, tudo é permitido. Fora isso, a degradação contínua da cidadania obriga a sociedade a buscar heróis de aluguel, alguns deles encontrados nos estádios de futebol. Fazendo da carestia do cotidiano o atalho mais curto para o calvário particular, o cidadão substitui os seus fracassados sonhos dourados pelas realidades cintilantes daqueles poucos que alcançam sucesso, fama e dinheiro. Quando algo de errado ocorre nessa troca de mão única, o resultado imediato é a explosão incontrolável da bestialidade humana que ora vemos.

    Fazendo das palavras que um dia antes do rebaixamento dirigi a Andrés Sanchez a base para o meu pensamento de agora, o melhor para o Corinthians seria a renúncia coletiva da diretoria, pois a turbulência que gravita na órbita do Parque São Jorge deixou de ser uma fábula que narra a soberba de uns e o fanatismo de outros para se transformar em um caso de polícia e cadeia para muitos. Até porque, grande e sempre altaneiro o Corinthians será, independentemente de quem seja o seu presidente ou centroavante.