(*) Marli Gonçalves –
Há uma intensidade descomunal em tudo que estamos vivenciando. Não sei se já houve épocas assim, mas devem ter ocorrido – como costumo brincar – quando eu não tinha nascido ainda. Novidades, inventos, notícias, desavenças, crises, e até as recuperações, agora tudo vem em baciadas, como em liquidações de queimas de estoque. E as nossas almas já não cabem mais nem em meras bacias, se as colocarmos à venda
Baldes e baldes, infelizmente de água fria. Potes e potes – não são mais só copos – de mágoas. Está tudo vindo com um furor tal que é assustador. Tudo agora é superlativo, do bom ao pior, e em todo o mundo. Eu não tinha nascido ainda se houve época semelhante. Não me venham com as primaveras dos anos 60, que eram diferentes, nem com as revoluções culturais. Não é esse o assunto. Meu temor maior é quando movimentações ocorrem, sim, mas sempre a partir de manifestações violentas, sem causa e sem padrão, e o que é pior, sem lideranças identificadas. Apenas mártires. Dá até medo pisar sem querer no pé de alguém.
Nada mais basta nesse mundo em que o céu já passou dos limites e o infinito parece mesmo ser a única medida. Tudo é grande, enorme, complexo, interligado. Lembro quando falávamos das prisões como barris de pólvora. Hoje o mundo inteiro é o próprio barril com o pavio queimando, e o óleo se espalha, inflamável. Uma empresa abre o bico e grasna menos AAAs e os mercados se abalam de uma forma muito parecida aos maiores desastres naturais. Milhão não é mais uma grande coisa, e tratamos de bilhões e trilhões, como se até já os tivéssemos visto. 140 caracteres de uma mídia social ultrapassam tratados sociológicos enciclopédicos e descartáveis. Cliques podem ser mais perigosos do que pistolas. Invasões de terrenos em nuvens virtuais, piores do que pragas de gafanhoto.
Tudo é ágil, em desenvolvimento. Estáticos só os nossos políticos, dirigentes e líderes em seus lengalengas completamente desconectados da realidade, que teimam em manter de Norte a Sul. De um lado, o estonteante ritmo das coisas; de outro, a paradeira de nossas boquiabertas expressões ao ver, entre outras cenas, turbas de jovens que, de repente, quase do nada, saem às ruas, quebrando tudo, matando, saqueando e levando na mão grande o que sempre ouviram dizer que era muito bom para consumirem. Então, eles resolvem um dia provar.
Não há ficção que não tenha previsto isso, embora sem tantos detalhes, e sempre lembro de filmes de fuga, de Los Angeles, de Nova York, todos com Kurt Russell, que mostravam as metrópoles destroçadas por maltrapilhos violentos emergindo das trevas, de becos. Está igual, conforme sinistramente previsto bem antes pelo cinema justamente para esta década. Ou pior, se espiarmos de perto, onde eles estão vivendo e se criando, com seus piolhos, sarnas e cachimbos de crack; ou moldados em pensamentos de raça única, ou raça boa, como lá pelos outros cantos.
Ainda não obtivemos, por outro lado, as láureas do progresso, que viriam, por exemplo, com grandes descobertas de cura para doenças terríveis e devastadoras. Não resolvemos o problema da fome, que se agrava, e que pode juntar-se à falta de água. Ainda não sabemos o que é a liberdade verdadeira, porque esta sempre tem seus verdadeiros detalhes censurados.
Entendem-se as revoltas. Revoltamos-nos quando queremos algo e por mais que lutemos não conseguimos alcançar. Muitas delas são revoltas íntimas. Como a que senti, por exemplo, ao saber que um cara tão gente boa e tão belo como o Giannecchini não só pode ficar doente, como fica, e de forma tão grave, humano e mortal como todos, lembrando que somos meros. Apenas meros.
Ficamos revoltados quando jovens morrem e matam de um lado ou outro por causa de copos a mais de exagero de outros tão iguais a eles, iguais a nós. Nos revoltamos quando vemos as caras de pau dos que nos roubam de manhã, de tarde e de noite, e depois ainda vêm esfregar nas nossas caras a riqueza que deveria ser de todos. Mas em geral nos revoltamos calados, em nossos cantos, cansados de todos esses excessos, de tudo estar tão rápido. Tão grande e tão incontrolável.
Só não fazemos revoluções. Senão elas também viriam em baciadas. E, como ocorreu em Londres, enfim sairíamos todos às ruas usando vassouras em vez de armas. E baldes, como capacetes.
São Paulo, meninos e meninas maluquinhos, 2011
(*) Marli Gonçalves é jornalista. Uma profissão que tem de lidar muito com as tais baciadas. E cansada de ouvir falar em faxinas superficiais.
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