Vamos bater panela?

    (*) Marli Gonçalves –

    Contra a mentirada. Contra a imposição de pensamento. Contra usarem religião e botarem Deus em tudo. Contra a corrupção. Contra a violência. Contra a falta de senso. Contra a banalidade, contra a gente não poder comer chocolate todo dia… “Vamobatêlata!” “Vamobatêbumbo!” Contra a censura!

    Durante muitos anos e até há bem pouco tempo mantive guardada uma panelinha linda. Ela era daquelas boas, pequenina pero cumpridora, bem antiga, inox sólido, Rochedo, tipo caçarola, e toda amassadinha, de tantas manifestações de que participou, junto de uma amiga colher. Qualquer bronca que aparecia e queríamos protestar, lá ia ela comigo para a janela fazer barulho, durante alguns bons minutos. Funcionava, porque muitas donas de casa participavam, em geral às seis da tarde, e vocês bem sabem que mulher quando entra na brincadeira, aproveita e desconta, fazendo barulho, batendo com força já que não tem um daqueles sacos de treinar luta de boxe…Levanta o braço aí quem lembra disso!

    Essa imagem me veio à cabeça esta semana e imediatamente lembrei da minha panelinha e me arrependi duramente de tê-la jogado fora em uma dessas faxinas que a gente tem de fazer de vez em quando, principalmente quando muda e quer carregar tralhas a menos. Acho que pensei que nunca mais iria querer ou precisar usá-la; afinal o país tinha se livrado da ditadura, do Collor (última vez que me lembro de bater panela), do alto custo de vida, de gente dizendo o que podíamos ver ou não. Ledo engano. Esta semana, se eu ainda a tivesse, a teria usado fazendo barulho para alertar a quem pudesse. Ou, se o tal deputado Protógenes Queiróz, do PCdoB, passasse por mim, corria o risco de ele próprio levar uma panelada pra se tocar, por tentar impor a moral de meia tigela dele.

    Patrulheiro da moral? Não é que esta pessoa chegou a pedir que o filme Ted, que todo o mundo sabe que é estrelado por um ursinho de pelúcia bem malandrinho, que fuma maconha, gosta de mulher, etc. e tal, fosse proibido, porque o enlatado entalou a mente dele? Tudo porque- desculpem: burro ou sem noção? – levou o filho, o “pequeno Juan”, de 11 anos, para vê-lo? O filme tem classificação correta, de 16 anos.

    Protógenes e o pequeno Juan, carregado junto na lama, passaram para a história com seus 15 minutos de chacota como fama. Envergonha ele próprio, o filho, e um pouco mais o partido, PCdoB, que mal ou bem tem um passado de lutas importante a ser citado, e que podia ao menos repreendê-lo, lembrando disso. Até agora, qual o quê!

    O assunto é ainda mais sério do que este, do ursinho americano com que o tira deputado implicou. Vira e mexe a censura volta à baila com algum celerado, sozinho ou com uma entidade que nunca ninguém ouviu falar, mas que se arroga a defender “interesses populares”, tentando proibir alguma coisa. A arte e a cultura são sempre os principais alvos, e agora implicaram com meu Monteiro Lobato de novo, por causa de Negrinha, de 1920.

    Não ousem tocar nas obras de Lobato nem na de ninguém, nem em parte alguma, incluindo as de gente com as quais eu jamais concordaria. Obra de arte é sagrada, a literatura é sagrada; filmes são sagrados. Toda criação é sagrada, pois. Por uma Primeira Emenda em voga no Brasil de forma mais clara.

    Corremos o risco de ver de novo as odiosas tarjas pretas cobrindo até nossos pensamentos, mas não as nossas vergonhas. Urubu querendo controlar a imprensa porque ela descobre as coisas nas quais adoram sentar com seus traseiros gordos, manipulando a informação entre amigos bem alimentados e pagos com verbas oficiais.

    Não podemos deixar nem um teco do germe prosperar, sob pena de criarmos exércitos de delatores, X-9, dedos duros. Sob pena de uniformizarmos ainda mais as ideias que a cada dia já parecem mais frouxas, brochas, inodoras.

    Vão censurar os escritos nos banheiros da vida. Lá fora (com reflexos aqui) um filme idiota, totalmente idiota, está matando por conta de um fanatismo religioso que tenta se instalar no país da diversidade pacífica até agora. Aqui, o diretor do Google pegou uma cana de algumas horas por conta da reclamação de um político de quinta. Tão caindo de pau na capa da revista que crucificou o Neymar. Mais de uma centena de estudantes de uma escola particular de alto nível em São Paulo foram suspensos apenas porque protestaram contra a imposição de um reality show nas salas de aula, com instalação de câmeras. E os diretores ainda argumentaram que com isso vão coibir …o bullying!

    Que tipo de gente queremos formar nas nossas escolas?

    Não é saudosismo, mas a pura constatação que muita coisa está deixando de ser vivida pelas gerações que chegam. Às vezes lembro de coisas que fiz (ou melhor, que nós fizemos), das roupas que vesti (que nós vestimos), dos lugares onde andei (onde nós andamos), artes e manhas praticamente impossíveis de ser repetidas. Mesmo nos piores momentos do país buscávamos e obtínhamos pelo menos nossa liberdade. Individual. Cada homem um manifesto completo, no arrojo de um cabelo comprido, uma calça justa, poncho e conga, da lavra do insubstituível Telmo Martino. Há fotos desses momentos no álbum, no fundo de gaveta de muita gente boa por aí, acredite. Éramos ridículos e felizes. Com calça boca de sino. Cintura alta. Baggy. Calça calhambeque. Bota branca. Kanekalon. Bolerinho.

    Era possível. Podia nascer Secos & Molhados. Rogéria e Roberta Close, Dzi Croquetes, tanta coisa doida. Hoje não pode.

    Éramos felizes e não sabíamos.

    São Paulo, procurando um megafone para já ter por perto, 2012

    (*) Marli Gonçalves é jornalista – Primeiro, dedico a Hebe Camargo, a mulher que nunca ninguém ousou censurar. E lembro que “eles” já tentaram proibir até que usássemos uma camiseta, que era muito comum na época, escrito COCAINE com aquela letra ondulada da Coca-Cola. Claro que uma luta inglória. Tenho a minha até hoje, no meu acervo.

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