Traumas e suas repercussões na infância e na adolescência

(*) Yvonne Bezerra de Mello –

Crianças e adolescentes vivem um período intenso de crescimento, desenvolvimento emocional e cognitivo, e de maturação cerebral e corporal, num processo dinâmico e complexo de mudanças que são interdependentes e associadas entre si. Sempre precisam de condições favoráveis nutricionais, ambientais e contextuais, para realizarem esta transição de maneira saudável até a vida adulta e para a plena integração social.

Todas estas fases de transformações da infância e da adolescência podem ser influenciadas, de maneira positiva para o completo alcance das potencialidades vitais, ou de maneira negativa, com distorções ocasionadas por situações de riscos e traumas, que podem interromper esta trajetória e repercutir para o resto de suas vidas.

A associação de múltiplas situações de risco e traumas constantes que ameaçam a integridade corporal e emocional pode contribuir para a fragmentação da seqüência das etapas de desenvolvimento, da aquisição das habilidades necessárias para o aprendizado e para o desempenho dos papéis sociais. A cada dia e progressivamente, as causas e os efeitos traumáticos, quando não interrompidos ou resolvidos, contribuem para a marginalização escolar e exclusão social, para mais discriminação e inequidades, e principalmente para outros episódios de violência e abusos com sintomas pós-traumáticos e problemas mentais. Ou, ainda mais grave, ocasionam desfechos trágicos, como desastres, conflitos armados entre facções rivais e polícia com “balas perdidas” e a morte precoce.

A taxa de mortalidade, por causas externas, na faixa etária de 10 a 19 anos de idade, para todo o Brasil, no ano de 2002, é de 47,6 por 100.000 habitantes, com marcante diferença entre os gêneros masculino (79,8) e feminino (14,9 p/100.000 habitantes). Para o Estado do Rio de Janeiro, esta taxa de mortalidade aumenta para 80,4 enquanto que para a Região Sudeste, que compreende ainda os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, esta taxa é de 59,9 p/100.000 habitantes (IBGE, 2002).

A proteção de crianças e adolescentes contra qualquer forma de abuso, abandono, exploração e violência está assegurada pela Convenção dos Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas, e confirmada pelo Brasil, país signatário deste documento.

Também é uma das cinco metas do compromisso firmado em 2002, “Um Mundo para Crianças”, e que desde então tenta ser implementado neste país, apesar das flutuações políticas governamentais e da constante falta de recursos públicos disponíveis para as áreas de Saúde e de Educação. Desde 1990, existe ainda o Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8069, que assegura os direitos de cidadania e de saúde como prioritários para todas as crianças e adolescentes até os 18 anos de idade. Pelo menos no papel, as leis existem e devem ser cumpridas num Estado de Direito e num país de regime democrático!

No entanto, a desigualdade social, o desemprego, os ciclos interatuantes da pobreza e da violência, o tráfico de drogas e a falta de suporte social nas escolas, são alguns dos fatores que mais contribuem para os episódios constantes de maus tratos, abandono e de situações traumáticas nos “bolsões de miséria” urbana e nas ruas-ruelas de mais de 200 favelas do Rio de Janeiro.

As vivências traumáticas são marcantes e têm consequências devastadoras para o crescimento e desenvolvimento emocional de crianças e adolescentes, além do enorme custo social e do impacto na saúde pública do Brasil, do qual o Complexo da Maré é somente um exemplo radical deste micro-cosmos e destes indicadores sociais, muitos que nem são divulgados.

Os problemas traumáticos que variam da desnutrição crônica primária, a infecções e hospitalizações freqüentes por doenças comuns destas faixas etárias, e ainda a lesões corporais, abusos sexuais e casos de negligência e do abandono familiar vão tendo um efeito cumulativo, crônico e progressivo causando atrasos no desenvolvimento cerebral e cognitivo, transtornos de aprendizado e alfabetização, repetências e exclusão escolar, além do aumento de problemas mentais, como depressão, surtos dissociativos, convulsões, abusos de drogas e álcool e transtornos de conduta. Atualmente, o “transtorno do estresse pós-traumático”, classificado como critério diagnóstico F43.1 pelo Código Internacional de Doenças-10, da Organização Mundial de Saúde, e o “transtorno depressivo” critério diagnóstico F32, representam um percentual significativo entre os transtornos mentais da infância e da adolescência, em nosso país.

O estresse pode ser definido como um conflito grave ou uma ameaça à liberdade ou integridade física, mental, sexual ou social e é vivenciado quando a pessoa perde uma ou mais fontes importantes de valores afetivos humanos, como a morte de mãe ou pai ou familiar, ou a perda de possessões como a casa, residência ou local onde vive, ou outras conexões de afeto e amor que são valiosas e importantes. Os fatores de estresse são sempre indesejáveis, incontroláveis, súbitos e difíceis de se adaptar, resultando em reações severas, intensas e negativas do comportamento habitual que sofre influências do eixo do sistema nervoso central hipotalâmico-hipofisário-adrenal com a liberação de vários hormônios e neurotransmissores, e que vão ativar os mecanismos de adaptação corporal para a sobrevivência. Daí os fatores de risco maiores e que causam os danos de saúde, com repercussões imediatas e a longo prazo no comportamento e na qualidade de vida das pessoas que viveram estes traumas durante a infância e a adolescência.

Fatores traumáticos extremos podem ser definidos como os que causam danos, injúrias ou lesões corporais e rupturas mentais, ou que ameaçam a própria vida ou a vida de outras pessoas, levando à morte inesperada. Estão também associadas as sensações de perda e da falta de segurança, maior vulnerabilidade e terror noturno. As causas mais freqüentes enfrentadas por crianças e adolescentes que vivem nas favelas são a morte ou testemunhar assassinatos ou agressões de entes queridos, separação familiar, castigos, torturas, abusos, doença mental ou alcoolismo familiar, e violências entre os grupos armados do tráfico de drogas local.

Eventos traumáticos constantes e prolongados afetam toda a dinâmica familiar e comunitária, causando um impacto maior nos mecanismos de adaptação e sobrevivência. Mulheres, crianças e adolescentes são sempre um grupo de maior risco, por serem mais vulneráveis e dependentes, além de sofrerem, muitas vezes “em silêncio” e sendo obrigadas ao isolamento social, com absurdas imposições culturais e estruturais, em relação ao gênero e ao grupo etário. Muitas vezes, adolescentes deixam de ir à escola por tiroteios e disputas locais. Ou são “ameaçados” e “marcados de morte” ou tem seus dedos amputados devido a castigos que são impostos, pelos “donos-do-poder” que assim fortalecem sua “autoridade”.

As reações pós-traumáticas são manifestas em diferentes formas e reações que variam de acordo com a faixa etária e a fase do desenvolvimento físico, afetivo, cognitivo e mental, em que se encontra a criança e o adolescente. As reações encontradas com maior freqüência podem ser divididas em 4 grupos:

1 – Reações corporais: baixa estatura, atraso do crescimento e desenvolvimento puberal, inapetência, insônia e dificuldades de dormir devido a pesadelos, cefaléias, convulsões e tremores, hiperatividade, problemas gastrointestinais, problemas imunológicos e reações alérgicas, problemas de fala e de audição.

2 – Reações emocionais: choque com amnésia, medo intenso, dissociações afetivas e da realidade, raiva e irritabilidade, culpa, reações de ansiedade, regressões, desespero, apatia, choros frequentes, reações depressivas e terror noturno, com enurese.

3 – Reações cognitivas: dificuldades de concentração, perdas de memória e confusão mental, distorções da realidade e imaginárias (“flash-backs”), pensamentos intrusivos e suicidas, perda da autoestima, dislexia e problemas de escrita.

4 – Reações psicossociais: alienação, passividade, agressividade, isolamento e solidão, dificuldades no relacionamento afetivo, abuso de drogas, perdas de habilidades vocacionais e de interesse comum em atividades escolares.

Como o trauma constante destrói o senso da segurança pessoal, a confiança no relacionamento com outras pessoas adultas ou familiares, além de contribuir para a falta de conexões afetivas e das expectativas para o futuro, ocorrem rupturas e interrupções na progressão das fases do crescimento e desenvolvimento, causando um profundo impacto nos mecanismos de adaptação e sobrevivência. Crianças e adolescentes que sofreram abusos ou abandono, e que foram traumatizadas, podem reagir em condutas de defesa e se tornarem mais agressivos com problemas de comportamento, por dificuldades em controlar seus impulsos e emoções, e levando a outras situações anti-sociais ou criminosas, abusos de drogas, e auto-agressões com mutilações corporais.

As principais estratégias de prevenção e intervenção envolvem não somente a interrupção dos maus tratos que causam as reações traumáticas, mas também o desenvolvimento de uma relação de confiança positiva, saudável, e que transmita proteção e segurança, devolvendo a auto-estima e desenvolvendo as habilidades (cognitivas, esportivas, culturais e de lazer) e potencialidades essenciais em relação ao futuro.

É importante também, a existência de um local que sirva de abrigo, apoio ou suporte comunitário e que possa servir como referência em casos de emergência, além de orientação sobre cuidados primários e apoio educacional. A expansão dos programas de prevenção com materiais educativos e informativos adequados devem fazer parte dos instrumentos de apoio familiar e comunitário, e serem multiplicados em programas e outros serviços formando uma rede de proteção local mais duradoura e respeitada. Dados e indicadores sociais, de saúde e de recuperação educacional devem ser avaliados semestralmente, visando uma melhoria deste programa assistencial.

(*) Yvonne Bezerra de Mello, fundadora e coordenadora do Projeto Uerê, é Doutora em Filologia e Linguística