Ser ou ter? Eis a questão que decifrei com um engraxate e um mendigo

    (*) Ucho Haddad –

    Pode parecer estranho o título deste artigo, mas o assunto veio à mente há dias, quando me vi diante das notícias sobre a expectativa dos lojistas em relação às vendas do Natal. Com o País atravessando uma séria crise, milhões, dezenas de milhões foram às compras, como se presentear o próximo fosse uma obrigação capaz de transformar em bondades repentinas todas as maledicências vociferadas ao longo do ano.

    Esse cenário continuamente consumista me assusta cada vez mais, confesso. Desde cedo soube dar o devido valor às coisas, mas antes de tudo aprendi que o mais importante é ser, não ter. A lição foi do meu saudoso pai, um engraxate de rua, entregador de armazém e enrolador de lonas de circo, que com o passar dos anos tornou-se um empresário bem sucedido, até que os donos do poder ceifaram-lhe o que conseguira com esforço e honestidade.

    Mesmo tendo alcançado uma condição financeira que lhe permitia uma série de benesses materiais, João Francisco, que foi e ainda é o meu Sócrates particular, jamais perdeu o jeito simples de ser e existir. Manteve a essência caipira que emoldurava sua alma. Poucas foram as ocasiões em que abandonou o seu Fusca branco ou deixou de calçar um quase sacro par de borzeguins pretos. Três vezes considerado gênio pelo MEC, ele sempre insistia comigo que era preciso cuidar do conteúdo, acumular sabedoria, desbravar novos horizontes. Esse conselho inesquecível até hoje ecoa em minha mente. Foi isso que me levou a ler e a escrever compulsivamente, como faço até hoje. Saber tornou-se um vício, escrever é o meu “ópio” de cada segundo.

    Como complemento da lição, deixou-me um ensinamento que guardo com muito cuidado na alma. Disse-me ele, na condição de um outrora engraxate, que era preciso compreender que muitas vezes o próprio sucesso está no brilho do sapato alheio. Fiz destas palavras a minha cartilha de vida, escrevendo incansavelmente para que a mente, o coração e a alma de cada leitor brilhem sempre, a cada letra, a cada palavra, a cada linha, a cada texto.

    Desapegado da parte material, ele preferia ser visto como um João ninguém. Mas não o era. Enquanto vivo, foi respeitado por sua essência, pela velocidade de raciocínio, pelo concatenar das ideias, pela simplicidade que tão bem misturava com a genialidade. E até hoje é lembrado por esse conjunto de detalhes importantes.

    Como mencionei anteriormente, acumular conhecimento passou a ser uma obsessão, o alvo sonhado de uma guerra que travei durante anos comigo mesmo. E até hoje travo, pois gosto de aprender. Afinal, já que citei Sócrates, “só sei que nada sei”. Quem sabe tudo não está aberto a novos aprendizados. Muito antes do jornalismo, aprender é o meu mister. E sempre será!

    Mesmo que na juventude o ser humano exiba um viés mais consumista, desde que exista possibilidade para tal, calmamente troquei o ter pelo ser. Mas tive aquilo que me foi necessário. Mesclando decisão com certeza, dei prioridade ao saber. Tal decisão me abriu portas, muitas portas. Talvez a mais importante delas, a da vida. Foi na vida que cursei a melhor de todas as escolas, onde conclui meu mestrado como ser humano, como alguém que busca saber de forma incessante.

    A vida profissional me levou à Europa, no começo da década de 80, na condição de correspondente internacional. Título pomposo e inesperado para um jovem com pouco mais de vinte anos, mas mantive na mira do pensamento a lição de meu pai. Humildade e foco no saber.

    Um dia, enviado de Milão a Paris para uma reportagem, na Cidade Luz pude comprovar quão certa fora a lição que tive com aquele que até hoje é minha fonte de inspiração. Com pouco dinheiro, decidi hospedar-me em um hotel de pouquíssimas estrelas, algumas delas decadentes. Era o que tinha disponível em Paris naquele dia e que cabia no meu bolso. Feliz por ter encontrado um lugar para dormir, logo fui entrando no hotelzinho. Corredor estreito, recepção de través, lá estava o dono, um iraniano que me olhou de soslaio. Sem muitas delongas, disse que um quarto estaria disponível só depois das 8 horas da manhã.

    A madrugada mal havia começado em Paris e o jeito era esperar. Deixei a bagagem com o homem de turbante preto e lancei-me nas ruas da capital dos franceses. Foi então que a lição do meu velho pai foi referendada. Andando despreocupado pela calçada, deparo-me com um mendigo, hoje chamado de morador de rua. O relógio marcava pouco mais das 2 da manhã e decidi conversar com o simpático e maltrapilho homem. Sentamo-nos no banco de uma praça próxima e a prosa não demorou a correr solta.

    Em dado momento, o mendigo perguntou de onde eu vinha. Disse que chegara de Milão, mas que era brasileiro. Para a minha surpresa, o sujeito alegrou-se ao saber da minha nacionalidade. De pronto subiu na mureta de um jardim e, como se discursasse para uma multidão, disse, em português: “Vou fazer uma homenagem a você”. E o tal homem, com gestual de quem sabia encenar, começou a dizer “Vou-me embora pra Pasárgada / Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei”… E por aí foi o maltrapilho até o fim do poema de Manuel Bandeira, meu poeta preferido.

    Anestesiado pela surpresa e chorando de emoção, perguntei ao mendigo como ele aprendera o poema de Bandeira. Respondeu-me dizendo que falava português, além de mais oito idiomas, e interessava-se por literatura.

    Conversamos sobre muitos nomes da literatura, ele declamou Shakespeare e outros mais, até que fizemos um duo, um jogral a dois, com “Inferno”, de Dante Alighieri, a primeira parte da obra “Divina Comédia”. Os notívagos que passavam pela praça dirigiam-nos olhares como se tivéssemos acabado de fugir do manicômio mais próximo. O dia amanheceu e tive de ir ao hotel mequetrefe para abrir as malas, me arrumar e em seguida apresentar-me ao diretor da sucursal.

    Trinta anos se passaram e a melhor imagem de Paris que consegui registrar ainda reluz na memória. Foi por causa da lição de meu pai e desse episódio inesquecível que, dias atrás, parei e pensei nas recentes gerações, nas quais prevalece o ter, enquanto o ser é desprezado como se fosse a maior das utopias.

    Nos dias atuais o ser humano vive sob eterna disputa, consigo e com o próximo. Compete sem saber porquê, mas só sabe existir supostamente pleno se conjugar o “ter”. O valor do cidadão foi sendo materializado, como se aquele que não tem fosse um pária.

    As novas gerações estão cada vez mais órfãs de conteúdo, de sabedoria. Desconhecem assuntos e fatos que na minha juventude eram quase uma obrigação saber. Esse desconhecimento que impera nos dias atuais é generalizado, não escolhe raça, credo, status social ou condição financeira. Açambarca quem passar pela frente e abre passagem para a tese de que o importante é ter mais do que o outro, pois só assim se destacará, será considerado melhor, mais competente e outros tantos absurdos.

    Por sorte dei ouvidos ao engraxate, do qual me orgulho, e conversei com o mendigo, de quem ainda me lembro como se o encontrara ontem. Por sorte sou, porque jamais acreditei que é preciso ter para ser. Muitos podem ter, mas não conseguem ser.

    Ser ou ter? Eis a questão. Ser, sempre ser! Sou o que sou, tendo ou não tendo. Tenho o que tenho, sendo eu, sendo sempre. Sendo ser.