(*) Augusto Nunes –
Quando Lula agarra um microfone, os plurais saem em desabalada carreira, a gramática se refugia na embaixada portuguesa, a regência verbal se esconde no sótão de um casarão abandonado, o raciocínio lógico providencia um copo de estricnina (sem gelo) e os dicionários se apavoram com a iminência de outra selvagem sessão de tortura. Já no primeiro parágrafo, os brasileiros que não tratam o idioma a socos e pontapés ficam pálidos de espanto ou vermelhos de vergonha. Menos os devotos da seita lulopetista.
“Quando Lula fala, o mundo se ilumina”, jura há quase 10 anos Marilena Chauí, professora da USP que também jura ser filósofa. A descoberta assombrosa justifica o lugar reservado à companheira no “Encontro com Intelectuais sul-americanos”, promovido nesta segunda-feira pelo Instituto Lula: Marilena está no palco, sentada à direita do Mestre. Com o rosto apoiado numa das mãos, parece à espera do momento em que a luminosidade do orador obrigará a plateia a proteger os olhos com óculos escuros.
Os presentes, esclarece a inscrição atrás da mesa, são Intelectuais (assim mesmo, com I maiúsculo). Estão reunidos não para um “encontro de” qualquer, mas para o “Encontro com”. Com Lula, naturalmente. Na abertura da discurseira, o ex-presidente avisou que estava ali para ouvir. Só parou de falar quando a garganta implorou por descanso. Gastou alguns minutos louvando a integração dos Intelectuais da América do Sul. No resto do tempo, tratou do que efetivamente interessa a um palanqueiro em campanha há quase 40 anos.
Primeiro, Lula comunicou que está aprendendo a ser ex-presidente, e ensinou que “é necessário tomar cuidado para fazer política sem parecer que quer continuar no cargo de mandatário”. Em seguida, deixou claro que continuará fazendo exatamente o contrário do que acha certo. “Lula vai cuidar pessoalmente das articulações com a base de Dilma para tentar garantir apoio à reeleição da presidente”, contou o companheiro Paulo Vanucchi aos jornalistas proibidos de testemunhar a aula de incoerência. Segundo o diretor do Instituto Lula, o chefe “vai gastar toda a energia para a manutenção da aliança entre PT, PMDB e PSB”. Ou seja: para assegurar a permanência de Dilma Rousseff no poder, Lula resolveu reduzir-lhe os poderes e nomear-se co-presidente.
O primeiro encontro entre a presidente eleita e o presidente que nunca desencarnou do Planalto deveria ocorrer em Brasília. Dilma sugeriu que conversassem em São Paulo nesta sexta-feira, quando visitará a cidade para participar das comemorações do aniversário. A aparente demonstração de subserviência camufla a esperteza geopolítica. Assombrado pelo caso Rose e pelo pau de macarrão de Marisa Letícia, tudo o que Lula quer é ficar longe de casa. A presidente vai mantê-lo por aqui no feriadão que começa no dia 25.
Pena que a afilhada não se anime a bater de frente com o padrinho. Se lhe estendesse o tratamento que dispensa aos ministros, o local do encontro seria o escritório da Presidência da República em São Paulo. Assim que Lula entrasse na sala que abrigava a chefe de gabinete, Dilma perguntaria se o visitante notou alguma mudança na paisagem. Ou se acha que está faltando alguém.
(*) Augusto Nunes é jornalista, colunista da revista Veja e entrevistador do programa “Roda Viva”, da TV Cultura. Dirigiu as revistas Época e Forbes (edição brasileira) e os jornais O Estado de S. paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora. Foi incluído pela Fundação Getúlio Vargas em uma seleção dos seis mais importantes jornalistas do Brasil.