Ode à terra natal

    (*) Ucho Haddad –

    Ser paulistano não é ter o nome da cidade grafado na certidão de nascimento. É algo que supera o entendimento, que toma conta da alma, que faz muita gente sofrer quando longe de São Paulo está. Ser paulistano é um jeito de ser, de existir. Desvairada, a Pauliceia desperta em muitos uma relação ciclotímica de amor e ódio. A vontade de fugir é tão grande quanto a de ficar. E vice-versa. É uma sensação estranha que nenhum divã é capaz de resolver. E a maioria acaba ficando, dividindo espaço com os muitos que chegam todos os dias.

    São Paulo é o sonho de muita gente. Assusta por seu concretismo, anima pelas possibilidades sem fim. Dependendo de como for encarada, pode, com certa facilidade, transformar o sonho em pesadelo. Se no mundo existem laboratórios urbanos, São Paulo é um deles. Quem sobrevive em Sampa é capaz de sobreviver em qualquer parte do planeta. Aqui se aprende de tudo um pouco. A se virar, a se esquivar, a ganhar, a perder, a enfrentar o trânsito do dia a dia, a se reinventar, a solucionar o que não tem solução. Avança-se, recua-se, como se fosse a bateria de uma escola de samba no carnaval. São Paulo é um carnaval diário. Tem mestre-sala, tem porta-estandarte, tem samba-enredo, tem diretor de bateria, tem som cadenciado. Tem comissão julgadora, tem torcida, tem comemoração, tem choro, tem refrão.

    A cada segundo o paulistano descobre uma cidade nova. Se não em seu todo, em muitos e pequenos detalhes. São Paulo é mutante, São Paulo é gestante. Máquina de fazer gente, usina de gente que faz. São Paulo não é para amadores. Esse é o meu alerta para todos os que sonham em desembarcar na quarta maior cidade do mundo. Aqui só os profissionais sobrevivem. Não importa a profissão. De executivo a mendigo, de são a louco, de pipoqueiro a banqueiro, de sacristão a ladrão. Todos precisam ser profissionais. Do contrário, a derrota é o próximo capítulo do cotidiano. São Paulo confunde-se com vitória, mas é preciso cautela para não ser derrotado pela cidade.

    São Paulo é uma reza diária, uma questão de fé, uma oração sem fim. São Paulo é casta, São Paulo é profana. Aqui peca-se, comunga-se, confessa-se, pede-se perdão. São Paulo repete, repete-se, obriga a repetir, faz todo dia a mesma coisa. Mas nada é igual ao que foi, nem ao que um dia será. São Paulo é una, é única, é múltipla, é a casa de todos, é a terra de ninguém.

    São Paulo exige que tudo seja maior. O pensamento, a ideia, a coragem, a disposição, a preguiça, a paciência, o descanso, o desafio, a conquista, o fazer, o desfazer. Até o relógio precisaria ser maior, com mais horas, com o ponteiro principal dando quatro voltas no mostrador. Em São Paulo o barulho é enorme, o silêncio, ensurdecedor. São Paulo é uma poesia do abstrato, com rimas vadias e estrofes pudicas. É apaixonante, é poligâmica.

    Daqui sempre parti para o mundo, para cá sempre voltei. Voltei nem sempre para ficar, mas para dar uma olhada na terra natal, para dizer presente, para se fazer presente. Para ver o quanto o mesmo de sempre mudou. Aqui plantei a semente da vida, colhi os frutos, alguns doces, outros acres. São Paulo é aridez em solo fértil. São Paulo é a terra dos absurdos, é o cenário do impossível. Repleta de possibilidades, deixa sua gente sem saber o que fazer, o que escolher. Às vezes dá vontade de mandar tudo para o espaço. De vestir uma fantasia de Nero e sair por aí acendendo um fósforo em todos os cantos.

    São Paulo é flamejante, é ardente, consegue ser fria e caliente ao mesmo tempo. Incendeia a alma de quem chega com cuidado, queima o coração de quem se mostra afobado. São Paulo é singular, apesar de no nome ter o ser no plural. Em São Paulo cada dia conjuga-se de um jeito diferente, mas sempre do mesmo jeito. É terra que deixa reticências, que não admite ponto final. Por aqui sempre há na outra linha travessão. O dia ressurge como um novo parágrafo, a noite avança sem parênteses. Com 459 anos, São Paulo tem seus pretéritos, perfeitos e imperfeitos. O presente é passado, vive no futuro. É o futuro do presente. Longe de ser subjuntiva, São Paulo é indicativa. São Paulo é verbo, São Paulo é substantiva, São Paulo é adjetiva.

    Em São Paulo encontra-se de tudo, como se fosse um armazém do mundo. Tem aquele parafuso inusitado, tem feijoada de madrugada. Tem lupanar funcionando à luz do dia, tem gente orando no calar da noite. Tem exposição, tem reposição, tem composição. Tem música, tem letra, tem melodia. Desafina muitas vezes, mas é uma orquestra de respeito. Tem pastel em todo canto, tem recheio em qualquer recanto. Tem político ladrão, tem ladrão que odeia política. Tem pizzas para todos os gostos, tem restaurantes para qualquer paladar. Tem botecos para todos os adeptos, tem acepipes para todos os famintos.

    Em São Paulo tem miséria, tem riqueza, tem malandragem, tem franqueza. Tem gente séria, tem quem faz da vida uma piada. Tem os que sonham sempre, tem os que gostam da realidade. Tem quem leva a vida na moral, tem quem vive marginal. Tem rua, avenida, viaduto, túnel, beco e viela. Tem propinoduto, obra superfaturada, gente mal amada. Tem gente de olho grande, mas na Liberdade tem um monte de gente de olho pequeno.

    Em São Paulo tem obelisco, tem arranha-céu, tem parque, tem gente de araque. Tem sobrado, tem sobrando. Tem quem falta, quem faz falta. O velho trem das onze foi atropelado por muitos outros que surgem a todo instante. O bonde é coisa de museu, da memória saudosista de quem um dia disse bom dia ao motorneiro. Rasgando insistentemente o cenário, o metrô continua como a bola da vez. Consegue unir os santos. Debaixo da Catedral da Sé, marco zero e trincheira da fé, parte levando os fiéis à igreja de São Judas e carregando a Fiel até o Parque São Jorge. Consegue unir os antagonismos, ligando a pobreza da periferia ao centro financeiro da nação.

    São Paulo tem promessas, tem discursos, tem o que se faz, tem o que não é feito. Tem drogas, traficantes e drogados. A cidade não para, mas tem sábados, domingos e feriados. Tem quem fuma, tem quem vira fumaça. Tem quem luta todos os dias o dia todo, tem quem briga por nada e a qualquer momento. Tem bicicletas, tem pedaladas, tem dribles, tem jogadas. Tem gente na cara do gol, tem gente na marca do pênalti. Tem gente com a corrente solta, tem gente que é roda presa. Tem gente com o pneu furado, tem gente com a bola cheia. Tem gente, como tem gente!

    Ser paulistano é ser um provinciano do mundo. Eclético a olhos outros, faz do shopping mais próximo a praia do final de semana. Lá se esparrama nas compras, sempre sob o guarda-sol do vil metal. Encerrado o ócio sabático, despede-se da malemolência consentida e veste o elmo da labuta. De olho no próximo descanso, o paulistano aciona a locomotiva verde-loura, coloca o Brasil nos trilhos, não aceita parada longa e nem mesmo fim de viagem. Carrega o País no dorso. São Paulo é o começo, é o meio, é o recomeço sem posfácio. É o prefácio que todos querem. É um pecado permitido, um milagre concreto, é a canonização do impossível, é a devoção da utopia.

    Aqui estou! Não sei se fico, não sei se vou. Sei que sou daqui. Se ficar, estarei em casa. Se for, voltarei pra casa. Afinal, Sampa é a minha casa e aqui estando alguma coisa sempre acontecerá no meu coração.