Último round: venço por nocaute ou jogo a toalha

    (*) Ucho Haddad –

    Jornalismo é o ofício que escolhi há quase quatro décadas, escrever é o “ópio” de todos os dias. Mesmo assim, este texto é o que menos vontade me deu de escrever ao longo da carreira. Falta de inspiração? Não! Falta de coragem. Há dias que venho postergando a decisão que ora tomo. Escrever o que para mim era inimaginável.

    Desde que recuperei a saúde, em novembro de 2000, e abri mão de juntar-me a uma equipe chefiada pelo saudoso embaixador Sérgio Vieira de Mello, decidi fazer do jornalismo, coerente e sem peleguismo, tergiversações e rapapés, uma arma para defender o Brasil e os brasileiros dos desmandos do Estado. Assim tem sido nos últimos doze anos, tempo em que estou mais uma vez na terra natal.

    Meses depois da minha chegada, nascia o que hoje é o ucho.info. O projeto avançou, com dificuldades, erros e acertos, mas ao mesmo tempo vi crescer a credibilidade do trabalho jornalístico de um site independente, que jamais se curvou às ofertas espúrias dos donos do poder. O número de leitores aumenta a cada instante. Até agora foram mais de quatro mil dias de labuta incessante, de propósitos firmes, de ideias invioláveis. De defesa inconteste da democracia, de enfrentamento aos corruptos que vilipendiam a cidadania. Quase três mil edições de um noticiário sempre aguardado, sem contar artigos de colaboradores, crônicas e editoriais.

    Foram horas a fio, atrás da informação e diante do computador, para produzir textos que carregam o que consegui colecionar de melhor nesses quase quarenta anos de estrada: a coerência, a justeza, o equilíbrio, a lógica, o faro para o inusitado, o tino para a notícia como ela realmente deve ser. Enfim, coloquei à disposição dos leitores nesses milhares de dias, com a ajuda de parceiros, um jornalismo responsável, com qualidade, aceito e respeitado por muitos, em todos os quadrantes verde-louros. O objetivo sempre foi mostrar a verdade dos fatos e levar cada um à reflexão. Nesse ponto o objetivo foi alcançado e ainda hoje o mantenho como se fosse o desafio do primeiro dia. Com tenacidade e confiança naquilo que escrevo, com amor e dedicação à profissão.

    Com o passar do tempo, ser resiliente tornou-se o combustível da existência, mas reconheço que em determinados momentos é preciso dar lugar à razão. Nesse período, inúmeras foram as vezes em que ultrapassei os próprios limites, que fui muito além do limiar da insegurança, na busca da melhor informação e com o objetivo de escrever a notícia da maneira mais correta e verdadeira e de emitir a opinião mais balizada e coerente. Sempre agi assim porque sei que aquilo que escrevo pode, em dado instante, pautar a vida de quem leu. Eis a responsabilidade! Jamais tive medo de errar, mas continuo querendo acertar cada vez mais. Superar-me é a obrigação diuturna que tenho.

    Quando se tem um objetivo continuamente desafiador, é importante saber que há momentos para avançar e recuar. Em tantos anos de jornalismo, avancei muito mais do que recuei. Na verdade creio que avancei até onde não deveria, correndo riscos que hoje talvez não enfrentasse. Não por medo, mas por cautela, porque os tempos são outros, a sordidez e a vingança dos desafetos evoluíram na direção do mal.

    Escrever, como já mencionei, é o meu sobrenome, minha cartilha da fé, minha segunda reza diária, minha oração do dia inteiro. Troco qualquer diversão por algumas horas de escrita. Por causa disso expus a minha família além das fronteiras da plausível. Em várias ocasiões meus filhos estiveram na mira de inimigos ferozes e sem escrúpulos. Tive de ser malabarista para afastá-los do perigo. Uma matéria foi o estopim para o sequestro de minha mãe, que, livre, me pediu para não desistir. Fui seguido, perseguido, ameaçado, grampeado, monitorado. Fui aviltado, achincalhado, ignorado. Continuei escrevendo, pois é nisso que acredito, porque é intangível o compromisso que tenho com cada leitor.

    Nesses anos investi o que ganhei, abri mão do que não tinha. Aceitei uma vida espartana e sem qualquer ousadia material. Apenas para manter intacto o ideal de defender o Brasil e os brasileiros. Jornalismo opinativo no Brasil é cutucar a onça com a vara curta e ao felino dar as costas. Como a toda ação cabe uma reação, reveses existiram, retaliações aconteceram. Defender-se não foi fácil, muito menos barato. Continuei escrevendo, pois é nisso que acredito, porque penso em deixar uma nação melhor aos que virão adiante.

    Perdi amores, perdi amados. Fui processado, injuriado e condenado. Caluniado e ofendido, fui alvo de atentados. Paguei indenizações por escrever a verdade, para não mentir fiquei sem tostões. Não desisti, porque se isso fizesse seria o fim. Segui avançando, continuei escrevendo sem perder a mão da escrita e a coerência do pensamento, mas ciente de que outras reações, mais vis e covardes, surgiriam no caminho. Como de fato surgiram.

    A resistência irritou e ainda irrita os adversários. A coerência incomoda quem no poder está e não consegue ser ou agir assim. A clareza dos textos provoca o estrebuchar da ira alheia. A didática da escrita é a centelha que aciona a reação truculenta dos oponentes. Esse chicaneiro coquetel da covardia vem corroendo a saúde, o sonho, o ideal. Continuei escrevendo, pois é nisso que acredito, porque não posso abandonar os brasileiros de bem.

    Depois de tudo tentado, os descontentes optaram pelo sufocamento financeiro. Antes do golpe de misericórdia, sem qualquer possibilidade de rendição de minha parte, acionaram o que seria o prefácio de um epílogo, que tenho adiado como posso. Acenaram novamente com a flâmula do suborno, ofereceram o dinheiro imundo em troca de um jornalismo de encomenda. Morro, mas não vendo a alma ao diabo. Termino os dias como maltrapilho, mas não permito o aviltamento da coerência e da consciência. Deixo de escrever, mas não traio a confiança dos leitores, não apunhalo as convicções.

    A estratégia peçonhenta dos desafetos já era esperada, pois a eles restaram poucas alternativas. Partiram para cima das escassas e magras fontes de financiamento que ainda me restavam. Perdi a batalha, não a guerra. Continuei escrevendo porque é nisso que acredito, mas passei a buscar uma saída para continuar acreditando e fazer com que os milhares de leitores não deixassem de acreditar que é possível resistir, mudar. E é possível, sim, resistir e mudar!

    Com base em aconselhamentos de profissionais com larga experiência no mercado financeiro, fiz um apelo aos leitores e seguidores para que, na medida do possível, se tornassem colaboradores do site que é uma trincheira da democracia e da cidadania. Para que cada um, dentro do limiar de suas posses, aderisse ao projeto de “fundraising” como forma de manter no ar o ucho.info, um veículo de comunicação independente que incomoda muita gente que precisa ser realmente incomodada todo dia, o dia todo. Não incomodasse, jamais estaria aqui a escrever com a alma sangrando.

    Alguns acolheram o meu apelo e têm contribuído financeiramente nos últimos meses, a quem me curvo para agradecer o gesto e a confiança em mim depositada. Mesmo assim, ainda estou longe de alcançar a meta mínima para não ser obrigado, em breve, a escrever o último ponto final. Nessa batalha em que se batem e enroscam os sabres do dinheiro, o meu perdeu a envergadura, não a valentia. Mas sei que a estocada do poder é infinitamente mais perfurante. E dela tenho escapado como dá.

    De forma alguma estou afirmando que desisti ou que tudo acabou. A luta continua, irei, ao soar do gongo, para o último round acreditando que é possível vencer o adversário por nocaute, apesar de a contabilidade não estar a meu favor. Se o revés surgir pela frente, paciência. Jogo a toalha, desço do ringue e sigo o caminho da vida com a cabeça erguida, a consciência tranquila, a sensação do dever cumprido, a alma em paz e com os muitos amigos que fiz nesses longos anos reunidos no coração.

    Homem de fé inabalável que sou, espero não jogar a toalha, mas colocá-la em volta do pescoço e erguer os braços para gritar uma vitória que não é minha, mas de todos. Vencer é possível, sozinho isso tornou-se impossível.

    Resistir nesse caso é um verbo que só pode ser conjugado na primeira pessoa do plural. Resistamos por cada um, por todos, por hoje, pelo amanhã, pela democracia. Resistamos, acima de tudo, pelo Brasil!